Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 29, 2008

Ciência num lugar inesperado


Numa cidade brasileira marcada pelo atraso, surgirá um dos
mais avançados laboratórios de neurociências do mundo


Marcos Todeschini

Fotos Luis Morais
Pesquisa de ponta no Rio Grande do Norte: crianças pobres ganharam aulas de alto nível

Poucos lugares no Brasil concentram tantos analfabetos e têm uma taxa de mortalidade infantil tão alta quanto Macaíba, uma cidade de 65 000 habitantes a 14 quilômetros de Natal, no Rio Grande do Norte. Quem mora lá costuma cruzar as ruas de terra batida em carroças e freqüentar o comércio local sem um centavo no bolso, apenas carregado de antigos objetos para trocar. Nesse cenário de pobreza e atraso funcionará, a partir de maio, um avançado centro de pesquisas especializado na área de neurociências. Sua localização improvável, sem dúvida, surpreende. Outro fato que chama atenção sobre ele é a rara unanimidade que, antes de ser inaugurado, já alcançou no mundo acadêmico – dentro e fora do Brasil. De saída, neurocientistas ligados aos bons laboratórios o classificaram como um dos melhores que haverá no gênero, avaliação amparada em dados objetivos. Primeiro por suas instalações, que fazem frente às de qualquer laboratório de primeira linha. O segundo e mais relevante diferencial do novo centro está justamente no tipo de pesquisa que será desenvolvido ali. Em linhas gerais, a idéia é criar próteses capazes de captar a intenção de um movimento no cérebro de uma pessoa e imediatamente o executar, algo que, se concretizado, dará nova perspectiva a quem sofre de alguma dificuldade motora. Na neurociência, nenhum outro estudo da atualidade foi tão citado e influenciou tantos cientistas, de acordo com um levantamento conduzido pela revista americana Scientific American.

Quem está à frente dele é Miguel Nicolelis, médico paulista de 47 anos, que há vinte se mudou para os Estados Unidos com o objetivo de seguir carreira como pesquisador. Foi na universidade Duke, uma das melhores na área da neurociência, que desenvolveu seu trabalho. Antes dele, os aparelhos de observação do cérebro conseguiam captar o movimento de apenas três tipos de neurônios responsáveis pela memória motora. O trabalho de Nicolelis é um avanço por ter resultado numa tecnologia capaz de descrever, simultaneamente, o padrão de comportamento de 130 neurônios – desde o momento em que há intenção de mexer um braço ou uma perna até quando de fato se executa tal ação. Com essa abrangência, as experiências conduzidas por ele, até então em ratos e macacos, mostram ser possível replicar um movimento com 90% de precisão. Isso por meio de um computador que lê as informações no cérebro e as envia à prótese, à qual está conectado. Em 2009, ele começará a testar a técnica em pessoas. A pesquisa terá como cenário os novos laboratórios de Macaíba, uma opção do próprio Nicolelis. Ele justifica a escolha pela cidade, da qual jamais havia sequer ouvido falar: "Escolhi a dedo um lugar onde, sem uma mudança tão radical quanto essa, as pessoas viveriam para sempre longe da ciência".

Paulo Liebert/AE
Nicolelis: "É preciso despertar no país o gosto pela ciência"

Até certo ponto, a trajetória de Nicolelis é típica de alguém que ambiciona tornar-se um cientista de relevo no Brasil. A cada ano, cerca de 4 000 estudantes brasileiros optam por estabelecer-se no exterior. Estão, antes de tudo, em busca de condições mínimas para a pesquisa – entre outras coisas, poder contar com um reagente químico no momento em que uma nova experiência se revela necessária. Parece exagero, mas essa é uma queixa real entre os cientistas brasileiros e aparece ao lado de outras igualmente básicas em uma série de estudos sobre o assunto. Foi certamente uma das razões para Nicolelis fazer carreira nos Estados Unidos, e não na Universidade de São Paulo (USP), onde se graduou. Agora, ele se revezará entre Duke, universidade da qual continua professor, e o Rio Grande do Norte. Ao fincar novas raízes no Brasil, passa a ser raridade diante de seus colegas. Em geral, os melhores nunca voltam.

Nos últimos cinco anos, Nicolelis pôs-se à frente de um mutirão diário com o objetivo de juntar dinheiro para construir o complexo de Macaíba, algo como 30 milhões de reais. Conseguiu coletar 70% dessa quantia na iniciativa privada, entre empresas brasileiras e universidades estrangeiras, como a de Lausanne, na Suíça, e a de Kioto, no Japão, com as quais o novo centro formará uma rede. O restante do dinheiro veio do governo federal. Durante esse período, ele montou um laboratório provisório próximo a Natal e uma escola onde crianças de colégios públicos e renda familiar em torno de um salário mínimo passaram a receber aulas de ciências no tempo livre. É parte do projeto concebido por Nicolelis. Os experimentos divertem estudantes como Herbert Reinaldo da Silva, de 11 anos, antes avesso à matéria. Ele resume o clima local: "Odiava ciências. Hoje sonho ser químico". Para entusiasmo de Herbert e de seus colegas, em breve chegará à cidade uma caravana com 27 dos mais influentes neurocientistas do mundo, para dar aulas aos profissionais do novo centro. Diz Nicolelis: "Sempre quis voltar ao Brasil e ajudar a formar e a manter no país gente com talento para ciências – uma chance que eu não tive". Os ainda modestos, porém concretos, avanços num cenário tão atrasado fazem refletir sobre o potencial de um investimento dessa natureza no Brasil

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