Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, março 28, 2008

Míriam Leitão - Voltas do mundo


PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
28/3/2008

O Brasil, a cada cinco anos, esquece o que se passou nos últimos cinco. A junção das duas grandes bolsas do país está ufanando nosso espírito brasileiro: juntas, Bovespa e BM&F viraram a terceira do mundo, atrás apenas da Bolsa da Alemanha e da de Chicago. A BM&F esteve no olho do furacão em 1999, naquelas operações que levaram alguns ex-dirigentes do Banco Central, como Chico Lopes, ao banco dos réus.

Os dirigentes do Banco Central na época defenderam a venda de dólares aos bancos Marka e FonteCindam garantindo que havia "risco sistêmico". Ou seja, outros bancos quebrariam, num efeito dominó. Eram dois pequenos bancos, como poderiam levar o sistema inteiro ao colapso? Naquele momento, essa foi a grande discussão. Mas, há duas semanas, foi exatamente o que o Fed fez: socorreu um banco de investimento, que não tinha uma agência sequer, alegando que se o Bear Stearns quebrasse haveria risco sistêmico, ou seja, outros bancos quebrariam. Imagina se aquele sistemão bancário americano ruísse na cabeça do planeta? Felizmente, o Fed, em pleno domingo, decidiu agir em vez de ficar no tira-teima.

Os mesmos dirigentes da BM&F que esta semana brilharam no noticiário comemorando a fusão com a Bovespa foram os que, em 1999, estiveram na CPI respondendo às perguntas dos senadores e deputados. O que os parlamentares queriam saber deles é se a bolsa quebraria caso os bancos quebrassem.

O que tinha a ver a bolsa com os bancos? Simples. Naquele mundo antigo, o Brasil tinha falta de dólares, e não este excesso de hoje. O Banco Central vendia dólar para evitar que o câmbio subisse. Em 1996, passou a operar no mercado futuro para administrar a cotação, sem ter que vender as reservas propriamente ditas. Ele vendia no mercado futuro para dar hedge (garantia) a quem tinha dívida em dólar.

Depois da crise da Ásia em 1997, a BM&F é que passou a oferecer o hedge. A bolsa só vendia essa garantia porque o BC era o contraparte. Na verdade, o comprador não precisava pagar pela garantia comprada, ele tinha apenas que depositar a margem. A bolsa passou a ser um braço do Banco Central, com direito à resolução do Conselho Monetário Nacional, para tentar sustentar o insustentável: o câmbio quase fixo. O risco sempre presente naquela política cambial - com a qual se lutou contra a inflação brasileira - era que o dólar disparasse. Isso acabou acontecendo em janeiro de 1999.

Quando, sob o curto comando de Chico Lopes, o BC começou a mudar a política do câmbio, foi um deus-nos-acuda. Dois bancos tiveram dificuldade de cobrir suas posições. Ao FonteCindam, o Banco Central vendeu dólar no teto da banda, exatamente o que estava obrigado a fazer pela política ainda vigente de bandas cambiais. Ao Marka, vendeu dentro da banda, mas abaixo do teto, num preço que permitia que o banco zerasse suas posições e fechasse suas portas.

Caso não vendesse, esses bancos ficariam inadimplentes na BM&F, e a bolsa teria que executar as garantias. Eles estavam muito alavancados; se não pagassem, fariam um rombo na bolsa. Houve um grande debate na época se as garantias mantidas pela bolsa eram suficientes ou não. A questão era crucial. Caso fossem suficientes, o BC tinha errado; caso não fossem, a decisão tinha evitado que o país tivesse uma onda de quebradeira; ou seja, o tal risco sistêmico.

Houve CPI para tirar essa e outras dúvidas sobre a operação de socorro aos bancos. Ao depor, os dirigentes da BM&F defenderam duas posições ao mesmo tempo. Disseram que, sim, as garantias seriam suficientes. Mas houve um momento em que o senador Romero Jucá - atual líder do governo Lula no Senado, na época, líder do governo FHC - perguntou se a liquidação dos dois bancos poderia ter detonado uma crise sistêmica.

O então superintendente da BM&F, Edemir Pinto, hoje diretor-geral, disse o seguinte:

- Não tenho dúvida que sim.

- Então a saúde financeira do sistema dependia dessa operação feita pelo Banco Central? - perguntou o senador (sempre) governista Jucá.

- Sim, perfeitamente - respondeu Edemir Pinto.

O então e atual presidente da BM&F, Manoel Felix Cintra, disse: "O Banco Central tomou a decisão que quis, de forma independente." Ficou a dúvida no ar.

Tudo fica muito curioso visto com a distância de nove anos. Os dirigentes do BC na época e dos dois bancos estão respondendo a processo; o mais notório, o ex-banqueiro Salvatore Cacciola está em Mônaco esperando decisão sobre o pedido de extradição. Cacciola tem que responder por outros erros, entre eles, o de fugir da Justiça brasileira. A BM&F cresceu, tornou-se uma instituição sólida, abriu capital e agora se funde com a também aberta Bovespa. Juntas se transformam numa das maiores do mundo. O real é uma moeda forte e estável e é a base da economia do, então oposicionista, hoje presidente, Lula.

Se tivesse havido quebradeira de bancos e da BM&F em 1999, o que estaria acontecendo hoje? Ninguém saberá. Enquanto isso, nos Estados Unidos, na capital do liberalismo não-intervencionista, o Fed resgata um banco de investimento, cobre seus passivos e vende a parte boa para outro banco, igualzinho se fez aqui, no Proer. A operação lá levanta uma dúvida: será que não é hora de ampliar a supervisão do Fed sobre o sistema financeiro?

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