artigo - João Mellão Neto |
O Estado de S. Paulo |
14/3/2008 |
“O Estado não pode dar a ninguém algo que antes não tenha tirado de alguém.” Essa assertiva parece óbvia, mas todos se esquecem dela quando o assunto é reforma tributária. O Estado, na cabeça de muitos, é um ente imaginário graças ao qual é possível todo mundo viver à custa de alguém. Nada mais justo, pelo menos do ponto de vista de cada um. Mas o Estado não produz riquezas, a não ser pelas poucas e pessimamente administradas empresas que ainda controla. No mais, a sua função é exclusivamente redistributiva: pela cobrança de impostos, taxas e “contribuições” ele acumula recursos que, ao menos teoricamente, despende em obras e serviços voltados para o bem comum. Acontece que, ao final das contas, ambos os lados ficam insatisfeitos. Quem pagou entende que pagou demais, quem recebeu acredita ter recebido de menos. Para um governante, a tarefa mais ingrata é a de promover uma mudança efetiva nesse complexo sistema de extração de recursos, por um lado, e alocação de verbas, pelo outro. Não há povo no mundo que se afirme plenamente satisfeito com seu sistema fiscal e tributário. Não há registro na História de algum grupo que tenha fundado uma “Sociedade dos Amigos do Fisco” ou algo similar. Os impostos, como bem diz o próprio nome, são impostos. O Estado os cria e cabe à sociedade a obrigação de pagá-los. O ideal é que o sistema seja o mais neutro possível: ninguém paga mais do que pode, ninguém recebe mais do que deve. Na prática, isso é quase impossível. Os segmentos da sociedade que gozam de melhor relacionamento com o poder sempre criam artifícios para pagar de menos ou receber demais. E o inverso ocorre com os segmentos que não contam com essa relação privilegiada. Mexer nesse complexo emaranhado, como já se disse, é uma missão trabalhosa e nada gratificante. Por pior que seja o sistema tributário de uma nação, ele ao menos goza do benefício da inércia. Trata-se de um tigre adormecido. Cutuque-se a fera e ninguém sabe o que pode acontecer... Para melhor situar os leitores vale dizer que as reformas tributárias são sempre reformas constitucionais e, portanto, seguem o rito legislativo próprio delas: o presidente da República envia ao Congresso o seu projeto de reforma constitucional (PEC), que, para valer, deve ser aprovado por três quintos dos membros de cada Casa legislativa, em duas votações independentes em cada uma delas. Geralmente, as PECs iniciam sua tramitação pela Câmara dos Deputados. Uma vez recebida a PEC pelo presidente da Câmara, este imediatamente cria uma comissão especial para dar parecer sobre ela. Essas comissões são compostas por membros de todos os partidos, na proporção de sua representação na Casa. Tive a oportunidade de ser presidente de uma comissão especial, a da Reforma Administrativa, no início do governo de Fernando Henrique Cardoso. A minha comissão não era a única. Simultaneamente foram criadas várias, para atender à ânsia reformista do nosso presidente sociólogo. Uma delas, justamente, tratava da famigerada reforma tributária e se reunia na sala contígua à da minha. Novamente a título de esclarecimento, cabe lembrar que cada comissão tem um parlamentar que cumpre o papel de relator. Sua função é recolher as propostas de emendas que são feitas pelos deputados com o fim de mudar ou aperfeiçoar o texto vindo do Planalto. De posse dessas emendas e ouvindo as diversas opiniões dos membros da comissão, o relator elabora seu parecer, que é submetido à votação da comissão. Se for aprovado, o texto segue para votação pelo plenário - a totalidade dos membros da Casa. Pois bem, a minha comissão foi inaugurada na mesma data em que se iniciou a da reforma tributária. O relator da comissão vizinha era o deputado Mussa Demes, um piauiense, tributarista experiente e dotado de uma paciência de Jó. Ele teve de valer-se dela toda para conduzir o seu trabalho, tamanhas eram as controvérsias e as paixões envolvidas. A comissão da Reforma Administrativa encerrou os seus trabalhos 14 meses depois. A da Reforma Tributária até hoje aguarda um parecer conclusivo, uma vez que não se chegou a consenso sequer quanto ao texto de seu preâmbulo. Eu, pessoalmente, não acredito em reformas tributárias em democracias e sob o signo da paz. Como se trata de dinheiro, todos participam sem disposição de ceder em nada e determinados a ganhar em tudo. O jogo é tipicamente de soma zero: para que um possa ganhar é necessário que outro perca na mesma proporção. E todos os jogadores têm poderes iguais. Não existe um árbitro para decidir controvérsias. Não é preciso ser conhecedor da Teoria dos Jogos (Neumann-Morgenstern, 1944) para intuir ser impossível um final feliz ou, ao menos, razoável. Se ganham os Estados produtores, naturalmente perdem os Estados consumidores. Se a União sai com vantagens, saem perdendo os Estados e municípios. A solução que enfrenta a menor resistência é aquela em que todos, de uma forma ou de outra, saem ganhando. Como o poder público pode até fabricar dinheiro - embora não produza riquezas -, opta-se por aumentar o quinhão de todos, comodamente omitindo quais são as fontes desses recursos extras. O resultado, no curto prazo, é que todos saem felizes e satisfeitos. Já no médio prazo, como o poder público está despendendo mais do que arrecada, surge uma incômoda inflação, o que, entre outras coisas, desorganiza a economia. No longo prazo, é o caos. Ninguém mais investe, porque se torna impossível calcular a taxa de retorno, ninguém mais emprega, porque não convém assumir custos maiores em eras de incerteza. E ocorre a total estagnação da economia. Queira Deus que, desta vez, seja diferente. Mas a experiência histórica nos indica que promover reformas tributárias é o mesmo que subir no lombo de um leão. Montar é fácil. Difícil mesmo é desmontar depois... |
Entrevista:O Estado inteligente
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sexta-feira, março 14, 2008
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