Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, março 20, 2008

Míriam Leitão - Risco da velocidade


PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
20/3/2008

Se você não souber definir o que são Fannie Mae e Freddie Mac, não se acanhe. "O Congresso americano está fazendo essa mesma pergunta", explica o economista Dionísio Carneiro. O governo americano acionou ontem as duas entidades na sua luta contra a crise. Dionísio responde outra dúvida que está no ar: o Brasil pode ter uma crise imobiliária? "Se a oferta do crédito continuar crescendo a 22% ao ano, sim."

Ontem, as autoridades dos Estados Unidos permitiram que as duas refinanciadoras de hipotecas, Fannie Mae e Freddie Mac, aumentassem seu limite de alavancagem. Elas poderão emprestar mais e terão que cumprir limites menores entre reservas e empréstimos. Isso vai significar US$200 bilhões a mais no mercado imobiliário.

- As duas instituições foram criadas em crises passadas. São do governo, mas têm um sistema de governança privada, têm ações em bolsa. São chamadas de "instituições patrocinadas pelo Estado". Por isso seus papéis sempre pagaram juros muito próximos dos juros do Tesouro. O problema é que agora seus spreads (taxas de risco) subiram muito. A decisão de permitir um requisito menor para as operações aumenta ainda mais o risco dessas instituições. E quem está correndo o risco: o Tesouro ou os acionistas? Por isso há uma discussão no Congresso sobre que responsabilidade tem o governo sobre elas - explica o professor e consultor Dionísio Carneiro.

Ou seja, todo dia uma confusão nova no desdobramento desta crise complicada e que vai ficar conosco por muito tempo.

- Uma crise estrutural dessas dura de dois a três anos - afirma Dionísio.

O Brasil pode vir a ter a mesma crise imobiliária dos EUA? Lá eles viveram uma farra do crédito concedido sem garantias a qualquer um, mesmo a quem, obviamente, não podia pagar. Aqui é o oposto: o Brasil só agora começa a ter financiamento imobiliário. Ambos os países parecem viver situações totalmente distintas. Lá eles estão na ressaca de uma distorção; aqui se está corrigindo a distorção de não haver financiamento imobiliário.

- O que transforma a correção de uma distorção em uma distorção é a velocidade do crescimento. O crédito imobiliário está crescendo a 22% ao ano, os agregados monetários estão crescendo a dois dígitos. Isso pode se transformar rapidamente em exagero. O que travava o crédito no Brasil era que a taxa nominal de juros precisava cair a um ponto que a prestação do imóvel pudesse competir com o aluguel. Mas, se há uma velocidade exagerada do crescimento, as pessoas passam a comprar imóveis porque eles estão se valorizando. Foi isso que aconteceu lá.

O exagero foi que levou os preços, nos Estados Unidos, a ficarem fora de lugar. Assim, os EUA estariam vivendo agora uma grande correção de todos os preços: câmbio, juros, ativos.

- Não se faz uma correção tão ampla sem dor.

O que está sendo corrigido, segundo Dionísio, são as distorções criadas pelo déficit externo americano, pelo déficit fiscal, pelas transferências de poupança de outros países para os Estados Unidos.

- Essa transferência de poupança ocorreu sem que houvesse uma transferência de poder. Normalmente quem exporta capital, ou seja, todos os que têm superávits em transações correntes, tinham que ter mais poder. Mas os EUA continuaram tendo o poder e sendo cada vez mais deficitários.

Toda expansão cíclica se esgota num determinado tempo. Mas a vivida recentemente foi prolongada, explica o professor, pelas inovações financeiras:

- Elas beneficiaram muita gente, mas tiraram a transparência do sistema. Desapareceu a relação entre quem emprestava e quem tomava crédito pelas muitas instituições criadas pelo mercado nessa intermediação. O poupador ficava a três instituições atrás do vendedor de hipotecas. Por exemplo: a viúva japonesa comprava títulos feitos com papéis imobiliários americanos. Bom para a viúva japonesa, que ganhava um pouco mais que aqueles juros negativos japoneses. Bom para a família americana, que teve um padrão de propriedade muito melhor do que tinha antes. Só que a viúva japonesa não sabia que artifício o originador da hipoteca estava usando para convencer o tomador do crédito. Se a viúva japonesa soubesse que, no fundo, estava financiando o desempregado do Alabama, ela talvez mudasse de idéia.

Quem corria realmente risco não tinha idéia do risco que corria. Já o originador do crédito achava que não corria risco algum, porque já tinha repassado o papel. Isso tudo fazia aumentar a velocidade de oferta de recursos. Toda demanda que cresce numa velocidade acima da capacidade da oferta acaba gerando inflação, bolha. Foi o que aconteceu. Por isso, Dionísio está preocupado aqui com os aeroportos lotados, cidades com trânsito estrangulado, e todos os outros sinais visíveis de aumento da demanda no Brasil.

O professor não acredita na tese do descolamento e recorre à economista Mônica Baumgarten, que escreve com ele a Carta Galanto, de análise de conjuntura:

- Há seis meses, a Mônica escreveu que, se alguma coisa houve com os ciclos econômicos, foi o fato de eles estarem mais correlacionados. O mundo não entra todo em recessão ao mesmo tempo, felizmente, mas as economias estão mais conectadas, e não o contrário. Não há descolamento, há apenas defasagem.

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