O guarda do aeroporto
"A saída da ‘reciprocidade’, que o governo brasileiro tenta adotar
na falta de outras idéias, pode fazer bem ao ego nacional, mas não
leva a grande coisa. Em primeiro lugar, o Brasil não tem de fazer
o que a Espanha faz; tem de fazer o que a lei brasileira estabelece;
quando quer reproduzir atos arbitrários cometidos na Espanha,
está apenas promovendo a reciprocidade no erro"
Brasil e Espanha estão com um problema – ou melhor, o Brasil acha que está tendo um problema com a Espanha, por causa das recentes e seguidas expulsões de brasileiros que chegam aos aeroportos espanhóis. Por não atenderem, no entendimento das autoridades locais de imigração, aos requisitos necessários à entrada no país, são detidos, tratados de maneira geralmente hostil e despachados de volta. "É desagradável", diz o chefe da diplomacia brasileira, o ministro Celso Amorim. Sem dúvida – sobretudo para os barrados, que gastam vinte horas de avião numa viagem Brasil–Brasil, ficam confinados no aeroporto à espera do vôo de volta e perdem o dinheiro da passagem. Mas a Espanha entende que não está fazendo nada de especial contra os brasileiros, e muito menos contra o Brasil. Não há dúvida de que o governo espanhol, como o brasileiro, tem o direito de permitir ou proibir a entrada de quem bem entenda em seu território; no caso, tem barrado muitos brasileiros por suspeitar que possam ser imigrantes clandestinos. Os erros, como em geral acontece, não estão nas altas esferas. Estão nos guichês da imigração, que é onde as coisas se decidem na prática. A solidariedade socialista do primeiro-ministro José Zapatero com o Brasil e com os povos sofridos da América Latina vai até o guarda do aeroporto; a partir daí começa a vida como ela é.
Não é um segredo que a inteligência de policiais de imigração, no mundo das coisas concretas, muitas vezes não ultrapassa os limites de sua farda. É por isso que fazem erros, e, como os agentes espanhóis fizeram erros, o problema está aí. Barraram mestrandos em sociologia, turistas de boa-fé e pelo menos uma estudante de física envolvida no estudo de partículas méson. Barraram, pelo que se noticiou, até mesmo um padre, com todas as suas batinas, paramentos e carteirinha da CNBB – e, quando se começa a barrar o vigário, é sinal de que há algo muito errado com o sistema. Constatações como essa ajudam a entender o problema; infelizmente, não têm maior eficácia para resolvê-lo. A Espanha pode admitir que erros acontecem, mas não vai mudar de rumo. Em 2005, tentando solucionar a questão pela via da tolerância, fez uma legalização em massa de 700 000 imigrantes clandestinos. Não deu certo. Hoje já soma entre 250 000 e 300 000 estrangeiros em situação irregular, dos quais entre 10 000 e 30 000 seriam brasileiros, e convenceu-se de que tem de endurecer – até para cumprir normas da Comunidade Européia. Quanto ao Brasil, não está claro o que poderia fazer de efetivamente útil. Não dá, por exemplo, para pedir que a Espanha seja mais compreensiva com os brasileiros em situação ilegal. Da mesma forma, a saída da "reciprocidade", que o governo brasileiro tenta adotar na falta de outras idéias, pode fazer bem ao ego nacional, mas não leva a grande coisa. Em primeiro lugar, o Brasil não tem de fazer o que a Espanha faz; tem de fazer o que a lei brasileira estabelece. Quando quer reproduzir atos arbitrários cometidos na Espanha, está apenas promovendo a reciprocidade no erro. Em segundo lugar, estão colocadas nessa história duas situações claramente diferentes. A Espanha tem barrado os brasileiros porque existe, ali, um problema com imigrantes clandestinos brasileiros. No Brasil, ao que se sabe, não existe nenhum problema com imigrantes clandestinos espanhóis. Segundo os dados de autoridades locais citadas pela Folha de S.Paulo, mais de 80% das 2 500 prostitutas de Palma de Mallorca, cidade com 500 000 habitantes, seriam brasileiras. Não há nenhuma cidade brasileira onde 80% das prostitutas sejam espanholas.
O real problema, no fundo, é um só: existe hoje um número muito grande de brasileiros vivendo ilegalmente no exterior, e isso gera atritos. É comum, nessas horas, surgirem surtos de indignação e, de modo geral, a idéia de que o governo brasileiro tem de fazer "alguma coisa". O governo tem de fazer uma porção de coisas que não faz, mas não dá para jogar nas suas costas a responsabilidade pelo fato de haver tantos brasileiros morando na clandestinidade em países estrangeiros. A responsabilidade, aí, é essencialmente deles mesmos. O Brasil, segundo uma abordagem bastante usada, teria a culpa de não fornecer oportunidades de trabalho para os que emigram. Oferece a eles exatamente as mesmas que para todos os demais cidadãos brasileiros que estão trabalhando aqui – e está oferecendo, hoje, mais oportunidades do que em qualquer época recente. A grande maioria dos imigrantes ilegais brasileiros não foi para o exterior por estar enfrentando dificuldades para sobreviver. Quem foi para fora vem, em geral, de algum dos degraus da classe média. Muitos têm formação básica completa, um bom número é de universitários e todos têm noção exata dos riscos que assumem como imigrantes ilegais. Saíram não porque a situação econômica atual os expulsou do Brasil, mas porque querem ganhar mais. O que os levou embora não foi a necessidade, e sim o interesse. É perfeitamente legítimo – mas não é a mesma coisa. A eles o Brasil deve solidariedade, simpatia e a ajuda que for possível. Não deve uma crise.