Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 02, 2008

João Ubaldo Ribeiro

Só faltam uns retoques


Na semana retrasada, já tive a oportunidade de observar penitentemente que vamos muito bem. Na semana passada, sedento de assuntos que servissem para um pau-mandado da conspiração da grande imprensa ou para um mercenário dos sórdidos interesses da Zelite ou qualquer dessas outras condições das quais de vez em quando me acusam, procurei avidamente de que falar mal e, suprema humilhação, não encontrei praticamente nada. Pelo contrário, a julgar pelas notícias que ouço e leio, pelos comerciais do governo e pelo que o presidente diz, acho que devo concluir que o famoso primeiro mundo está cada vez mais próximo e que, assim como quem não quer nada, praticamente chegamos lá e nem notamos.

Lá pelo começo da semana, já se abriam manchetes e manchetinhas ufanas, pelo Brasil afora: Naomi Campbell (se você ainda não sabia, respire fundo e tente relaxar na cadeira, porque a notícia é de arromba), isso mesmo, Naomi Campbell foi operada no Brasil! O Fantástico é só mais tarde, mas vou ficar muito decepcionado se ele não sair com uma bela matéria sobre o assunto, com direito a entrevistas dos médicos e a propostas de populares no sentido de que a sonda empregada na laparoscopia seja tombada e posta em permanente exibição em local público adequado à visitação intensa de que deverá ser alvo.

Claro que, brasileiro como qualquer um, que com altivez agita a bandeira nos ares e chora na hora do Hino, senti o coração palpitar de orgulho e li a notícia diversas vezes, sob a foto da linda Naomi. Sim, não deixa de ser arrebatador saber que doravante podemos proclamar que Naomi foi operada no Brasil. Mal posso esperar minha primeira oportunidade - alô, Berlim! - de espalhar isso alto e bom som por esse mundão afora. Mas má vontade é uma desgraça e nem um tapa na boca desse quilate me aquietou os instintos vis, permanentemente afiados pela minha assustosa militância na imprensa.

Na saúde, como sobejamente comprova a cirurgia de Naomi, vamos muitíssimo bem. Aliás, já sabíamos disso há bastante tempo, quando o presidente afirmou, sem nem deixar tremer um fio de sobrancelha, que, em matéria de saúde pública, estamos perto da perfeição. E eu, ignorantemente, dando crédito à constatação de epidemia de dengue no Rio de Janeiro e não desconfiando que são pura manipulação as reportagens sobre as filas nos hospitais públicos, pacientes empilhados pelo chão e gente esperando atendimento urgente há meses ou anos. Mentira tudo isso - perguntem à Naomi, que conhece a questão da saúde no Brasil e, como estrangeira, é insuspeita.

E não deve ser esquecido o momento em que o presidente, depois de submetido a procedimentos médicos em São Paulo, afirmou que havia sido tratado da mesmíssima forma a que qualquer brasileiro tem direito, qualquer um podia fazer a mesma coisa. De novo - e acho isso verdadeiramente admirável - não lhe tremeu um fio de cabelo nem se alterou a voz altiva e descompromissada com qualquer coisa que na hora não lhe interesse. E de novo a má vontade me sopra de volta o que ele falou na semana passada, dirigindo-se a trabalhadores. Contou como tinha sido a amputação de seu dedo e sugeriu que o serviço teria sido melhor, se ele não tivesse sido tratado como o pobre ainda costuma ser tratado neste país.

Notei uma certa contradição entre uma afirmativa e outra e pensei como ele reagiria, se chamado a explicar-se. Ora, ele reagiria com a mesma retórica de sempre, esqueci que hoje nos rege a lógica dele, que tem suas peculiaridades. Diria, por exemplo, que ''''uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Você não pode querer tratar uma coisa do mesmo jeito que pode tratar outra coisa, nem tratar outra coisa do jeito que a primeira coisa. Uma coisa que precisamos fazer neste país é distinguir bem as coisas, porque muitas vezes, confundimos uma coisa com a outra e as coisas ficam completamente embaralhadas, com a conseqüência de que não casa coisa com coisa e não se resolve coisa nenhuma''''. Pronto, explicado. Tudo aqui é transparente.

Outros sintomas, que procuro ignorar, vêm mostrando como nossa aproximação, quiçá integração, com o primeiro mundo tem sido ajudada até pela Natureza. Hoje não precisamos ficar com inveja dos americanos, quando vemos na tevê tornados invencíveis, cortando as planícies de Iowa. Hoje já temos tornados, tivemos um furacão e provavelmente teremos mais, e temos terremotos. A situação da neve vem melhorando e, em breve, não é impossível que, também como os americanos, nos mobilizemos para salvar vítimas de avalanches de neve, um dos grandes sonhos nacionais. Assim que eu me lembre de cabeça, acho que só falta um vulcão e o estabelecimento de um regime de segregação racial, ansiosamente almejado por alguns, para alcançarmos os padrões, pelo menos os principais, do primeiro mundo.

Portanto, tenhamos nossas queixas na conta de alucinações. A educação vai muito bem. Quando vemos reportagens sobre crianças acordando ainda na escuridão, para enfrentar selva, lama, rios e caminhadas de léguas somente para ir a uma precária escola rural, devemos lembrar que o grande Abraham Lincoln caminhava milhas sobre e sob a neve, para ir à escola. E o Nosso Guia nem caminhava nada para ir a escola nenhuma. Tudo neste mundo é relativo e deve ser visto com os olhos da compreensão e da boa vontade. Desta forma, como está acontecendo neste instante, vemos como nossos problemas já foram resolvidos e que bastam alguns retoques para a Grande Obra completar-se. Graças ao Nosso Guia, não somos mais um país atrasado. E, se ele não nos chamasse a atenção, nem notaríamos.

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