Somos todos náufragos
Se a literatura brasileira atual é, portanto, quase toda uma paráfrase, Milton Hatoum é uma de suas poucas exceções. Em seus livros vemos suas fontes - as quais jamais procura disfarçar ou negar - e, ao mesmo tempo, sentimos que o curso das águas foi desenhado por ele e ninguém mais. Em seu novo livro, a ótima novela Órfãos do Eldorado (Companhia das Letras), vemos toques de Machado, de Rosa, de Graciliano, também de autores estrangeiros como Flaubert e Onetti. Mas vemos sobretudo Milton Hatoum, ouvimos a voz - de ampla tessitura e afinação - do autor de Relato de Um Certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte. E confirmamos como cabem vozes reais ou literárias nesse estilo elástico e ético, responsável pelo mundo intenso que carrega em si.
Pois há novidades muito interessantes. É o livro de Hatoum mais imbricado com a atualidade brasileira. Novamente temos sua escrita sugestiva, de tom memorialístico, e com algumas preocupações também comuns aos outros livros, como a figura do pai; mas agora ele fala mais abertamente da sociedade em que vivemos. É um texto sobre a crueldade brasileira quase sempre velada, sobre a falta de uma elite digna do nome, pois desprovida de espírito público, de cultura verdadeira, de firmeza moral. Ali está o país da propina, das licitações fajutas, do paternalismo que faz pequenas caridades com uma mão e grandes falcatruas com a outra. Eis a mentalidade oligárquica da classe dirigente, não importa de qual origem social ou regional, que não consegue funcionar a não ser por suborno, sonegação e segregação - tudo, claro, desmentido sempre ou tratado como desvio ''''de praxe''''.
Não se trata de ser contra este ou aquele governo, a favor desta ou daquela ideologia. Trata-se de mostrar o jogo de máscaras vigente há muito tempo, continuado em vez de interrompido pelos ex-esquerdistas que chegaram ao poder no Brasil de 1994 para cá. Arminto, o narrador, perambula por Manaus e arredores em busca de uma paixão impossível, Dinaura, e acaba vendo revelada a verdadeira história de seu pai. Como bom herdeiro machadiano, ele ignora a realidade ao redor. De Machado, por sinal, lê um romance a certa altura. Rosa aparece não apenas na sonoridade de um nome como Dinaura, mas também na prosódia do velho narrador (''''Foi um alívio expulsar esse fogo da alma. A gente não respira no que fala? Contar ou cantar não apaga a nossa dor?'''').
Graciliano, porém, foi em quem mais pensei enquanto lia a novela. Há nela a maneira contida e desolada com que o autor de Infância e Angústia descrevia acontecimentos terríveis, amargos, um timbre de quem se recusa a confundir indignação com sentimentalismo. ''''Andei de bonde pela cidade, vi palafitas e casebres no subúrbio e na beira dos igarapés do centro, e acampamentos onde dormiam ex-seringueiros; vi crianças ser enxotadas quando tentavam catar comida ou esmolar na calçada do botequim Alegre, da Fábrica de Alimentos Italiana e dos restaurantes.'''' Sem ser fatalista ou ideológico, Hatoum mostra o que há para mostrar, não o que se quer ocultar ou panfletar. Só um bom escritor para falar de belezas naturais, abusos sexuais e referências folclóricas sendo tudo menos apelativo.
Mas o livro não é apenas sobre uma sociedade que perpetua privilégios enquanto distribui esmolas. É também sobre a relação com os mitos, principalmente o de Eldorado, a cidade encantada no fundo das águas aonde as pessoas seriam levadas para encontrar ''''a felicidade e a justiça'''' que estão escondidas em seu mundo real. É o mito não como fuga, mas como signo, como forma de interpretar o desencanto. Tanto que Eldorado é também o nome do navio do pai de Arminto, cujo naufrágio é também o de um lugar que tanto prometia. Nesse território ''''anfíbio'''' entre fato e mito, entre o regional e o universal, as metáforas são ainda mais importantes - belas imagens como ''''Aí fico calado, e deixo a noite entrar na vida'''', ''''Uma sombra do meu pai estava dentro de mim, como um caroço numa fruta podre'''' e ''''A água preta, quase azulada. E a superfície lisa e quieta como um espelho deitado na noite''''.
A escrita de Hatoum não tem a força de Graciliano; é mais ligeira, talvez porque evite esmiuçar visões e sensações, exceto em algumas passagens de Dois Irmãos. Seu texto flui de uma forma que às vezes nem percebemos quanto lodo arrastam sob si. É algo raro na literatura brasileira atual, ou na arte brasileira em geral, na qual a moda é a exposição ruidosa dos conflitos em sua superfície. Que tenha colocado num livro de cem páginas tudo que colocou, enfim, é admirável. E que sem renunciar a isso tenha se voltado para a torpeza presente da sociedade brasileira, é mais ainda. Num país náufrago, não deixa de ser um alento que alguém tenha coragem de decantá-lo.
RODAPÉ
Um amigo cometeu uma gentileza fora-de-moda e me enviou um livro editado em Portugal, António Vieira - Uma Síntese do Barroco Luso-Brasileiro, de Aníbal Pinto de Castro (CTT Correios). Além do belo livro, com selos, mapas, fac-símiles e ilustrações de época, há a semelhança com o que escrevi aqui há três semanas. O autor escreve:
''''Vieira conciliou, como poucos espíritos em toda a história da cultura portuguesa - e por certo como nenhum outro no seu tempo! - a viva clareza intelectual dos clássicos (...) com a apaixonada vibração emocional e a prodigiosa imaginação que, dois séculos mais tarde, haviam de marcar a fogo tantas facetas da alma romântica. O hábito negro de Santo Inácio de Loiola dominou-lhe as emoções (saberia Deus com que dificuldade, muitas vezes!), educou-lhe a inteligência, disciplinou-lhe a vontade, mas quase nunca conseguiu frear-lhe os vôos da imaginação, nem atenuar-lhe o fulgor da inteligência.''''
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
Está muito bem organizada a exposição Revolução Genômica, no prédio que era da Prodam, no Ibirapuera. Ela explica o que é DNA e genoma, com ótimos recursos tecnológicos e cenográficos, e apresenta com sobriedade questões polêmicas como clonagem, transgênicos, terapia genética, etc. É perfeita para levar os filhos, pois são raras as escolas brasileiras que têm laboratórios capazes de materializar o que eles aprendem teoricamente (ou memorizam mecanicamente), e você também pode lembrar coisas que tinha esquecido.
A exposição é a segunda da série acertada entre o Instituto Sangari e o Museu de História Natural de Nova York. A primeira foi aquela sobre Darwin no ano passado, no Masp, que teve público de 175 mil em dez semanas. A próxima será sobre Einstein, provavelmente no mesmo endereço desta sobre genoma. É um lugar amplo e abandonado, que bem poderia se tornar o Museu de História Natural de São Paulo, como sonham Ben Sangari e todos que sabem a importância de um espaço como esse, num país onde a educação é tão fraca, especialmente nessas áreas, e onde ciência não é cultura e cientista não é intelectual...
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Eu queria saber:
1) Onde estão aquelas pessoas todas que defendiam a CPMF porque o orçamento do governo é ''''engessado'''' e o corte prejudicaria investimentos e até mesmo a saúde, mesmo que a arrecadação federal viesse subindo 10% ao ano, mais que o dobro do PIB? É preciso sair um número como o de janeiro - nada menos que 20% de impostos a mais tirados da sociedade pela União - para que entendam que a contribuição não deveria nem ter existido?
2) O que o governo vai fazer com os bancos que, a pretexto do aumento revoltante do IOF na calada do réveillon, mandam para as casas dos cidadãos as faturas de cartão de crédito com juros de 14,49% ao mês?
3) Onde estão os petistas velhos de guerra (ou de discurso) que viviam reclamando do governo FHC por se vender ao mercado financeiro internacional e jamais criticaram o governo Lula por aumentar as reservas para mais de US$ 180 milhões, com o objetivo de superar a dívida externa e assim pretensamente receber o ''''investment grade'''' da banca?
É, sem dúvida nenhuma, um país único. ..