Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, março 21, 2008

Historiadora diz que missão artística francesa é mito

Eles se convidaram

Nova história da "Missão Francesa" mostra que
ela não veio ao Brasil a chamado de dom João VI


Mary Del Priore

Fotos Divulgação

O Rio de Janeiro em três pinturas de Taunay: o neoclassicismo francês abandonou as cenas heróicas de batalha para retratar as paisagens que representavam a pátria amada

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Trecho do livro

Numa obra vigorosa e judiciosamente ilustrada, O Sol do Brasil (Companhia das Letras; 400 páginas; 55 reais), Lilia Moritz Schwarcz revisita um dos mitos da história da arte no Brasil: a Missão Francesa. Autora de vários livros sobre história cultural – como As Barbas do Imperador –, ela se debruça sobre o período de dom João VI no Brasil para oferecer ao leitor um amplo afresco sobre pintura e pintores e a relação de ambos com o cenário brasileiro. O fio condutor é Nicolas-Antoine Taunay. Nascido numa família de artesãos ligados à manufatura de Sèvres, Taunay integrou o grupo de emigrados que, por muito tempo, se acreditou "convidado" por dom João VI para trazer a civilidade francesa aos trópicos. O convite nunca existiu, e a tal "missão" francesa, que chegou ao Brasil em 1816, foi antes uma reunião fortuita de artistas.

Para refazer a viagem do paisagista francês, Lilia vai às raízes das relações entre o Brasil e a França. Teriam os relatos de Jean de Léry, no século XVI, e de outros viajantes de passagem colaborado para forjar um imaginário sobre a natureza brasileira? Tudo indica que sim, e que a moda das viagens pitorescas contribuiu para que um grupo de bonapartistas caídos em desgraça depois da derrota do imperador em Waterloo, em junho de 1815, resolvesse correr o risco de atravessar o Atlântico. A abundância de plantas e animais teria acenado como uma promessa de inspiração estética. Calcada no retorno ao passado, voltada para o primado da forma e o elogio da nação, a pintura neoclássica estava na raiz da formação de Taunay. Ombreando com artistas da mesma época ligados a diferentes gêneros – o histórico, os retratos, a paisagem –, como Jacques-Louis David ou Jean-Baptiste Greuze, Taunay vai bebendo nas várias fontes e aprimorando o próprio estilo. A grande figura de então era, sem dúvida, David, pintor do conhecido A Morte de Marat. Debret, outro membro célebre da chamada Missão Francesa, era primo de David e costumava freqüentar seu ateliê.

Esse foi também um momento em que a pintura ficou a serviço do estado. Sem cerimônia, podia servir a um rei Bourbon, passar do seu serviço ao dos sanguinários revolucionários e destes a Napoleão, que encarnava, nas telas de David, a noção de heroísmo. Napoleão era homenageado nos salões de pintura, enquanto Josefina, sua mulher, vivia cercada de artistas em cuja órbita girava Taunay. Quando o poder de Bonaparte começou a declinar, uma visível mudança na hierarquia de gêneros ocorreu: a pintura histórica, que retratava batalhas, cedeu espaço à paisagem, que se tornou sinônimo de terra natal e de pátria amada. A decisão de vir para o Brasil associava, portanto, duas tendências: a viagem em busca de repertórios paisagísticos novos e a fuga de uma Europa mergulhada em sangue e conflitos.

Taunay: planos de ser tutor da casa real frustrados pelo "retardo cultural" do Brasil

É nesse contexto que um grupo de artistas franceses se uniu para empreender a travessia. Sonhos individuais se cruzavam com coletivos: da fundação de uma Academia de Artes nos trópicos à aspiração de ser preceptor dos filhos do rei, como desejava Taunay. Eles chegaram à Baía de Guanabara em março de 1816. Lilia mostra que nada houve de convite oficial nem de garantia de emprego. Mas, afinal, quem inventou a Missão Francesa? Debret é o pai da história, que apresenta o grupo como um conjunto de generosos missionários que vieram ensinar beleza aos selvagens. Como quem conta um conto aumenta um ponto, ela foi se enfeitando graças a vários autores, de Araújo Porto Alegre a Morales de Los Rios. Até bater, já no século XX, em Mário Pedrosa e Donato Mello Júnior, que começaram a "desconstruir" o mito: foram eles, os franceses, que se convidaram. Eles quiseram vir. Não deu certo e os trópicos acabaram por expulsá-los. A tentativa de unir a valorização da monarquia com a paisagem natural, fórmula bem-sucedida na França, não funcionou aqui. Taunay não tinha alunos nem clientes, e, segundo ele, o país sofria de um grave "retardo cultural".

Essa sinfonia de informações é magistralmente dirigida por Lilia, que dialoga com autores de peso, como o historiador Simon Schama e o crítico de arte E.H. Gombrich. O Sol do Brasil é uma obra que nasce clássica. As outras tentativas de desconstruir a missão, por várias razões, não tiveram o mesmo calor nem o mesmo brilho.

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