|
O Estado de S. Paulo |
20/3/2008 |
O processo inquisitorial de Galileu é uma chave crucial de nossa interpretação da modernidade. A narrativa do confronto prometéico entre a ciência, que é progresso e luz, e a religião, que é retrocesso e sombras, está inscrita na nossa mente como uma tinta indelével. É por isso que nos surpreendemos diante da informação de que Charles Darwin consolidou seu interesse pela história natural enquanto estudava teologia em Cambridge - e mais ainda ao sabermos que escreveu A Origem das Espécies como um crente em Deus. Todos nós, e não só os comunistas, encaramos com certa naturalidade a curiosa metáfora de Karl Marx, que identificou a revolução como “locomotiva da História”, porque tendemos a admitir que há uma História, assim, com maiúscula, cuja trajetória se acomoda aos trilhos da ferrovia do futuro. O culto ao progresso, que é antes de tudo um culto à razão científica, configura a religião pagã da modernidade. Os pólos da narrativa caricatural da modernidade emergiram na forma dos dois inquisidores da polêmica sobre as pesquisas com células-tronco embrionárias. O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, alertou para a inauguração de uma “época do obscurantismo e do atraso” caso o STF venha a julgar inconstitucionais as pesquisas. Já o ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles reiterou a tese da Igreja segundo a qual a vida está presente na “célula autônoma” que “surge, por movimento de dinamismo próprio, independente de qualquer interferência da mãe ou do pai”. Atrás das posições polares se adivinham os contornos da próxima guerra de valores, que será sobre o aborto. Será uma lástima se o debate público cair prisioneiro na armadilha de dois fundamentalismos. O articulista Reinaldo Azevedo, um católico, sugere que há espaço para nuances. Ele aceita, com relutância, a permissão das pesquisas com células embrionárias, mas se opõe por princípio à legalização do aborto. No seu blog, chama a atenção para a intervenção da bióloga Mayana Zatz, que estabelece uma distinção essencial. “No aborto, há uma vida dentro do útero de uma mulher. Se não houver intervenção humana, essa vida continuará. Já na reprodução assistida, é exatamente o contrário: não houve fertilização natural. Só há junção do espermatozóide com o óvulo por intervenção humana. E, novamente, não haverá vida se não houver uma intervenção humana para colocar o embrião no útero.” A CNBB elevou o combate ao aborto à condição de eixo de sua Campanha da Fraternidade. Sob o sistema político que a separa do Estado, a Igreja fala legitimamente para os seus fiéis - e exprime um fundamentalismo que concerne à sua própria natureza. O ministro Temporão, por outro lado, é um agente do Estado, do qual se espera alguma coisa diferente da militância política fundamentalista. Quando ele se veste com a fantasia de porta-voz da ciência e, em nome da saúde pública, afasta liminarmente as objeções éticas levantadas pelos religiosos, revela apenas a estupidez da razão. Sob Temporão, a esfera da saúde pública foi isolada, por uma muralha de insensatez, das esferas da moral e da cultura. Um experimento do programa de DST/aids instalou em escolas públicas máquinas de distribuição de preservativos para adolescentes a partir dos 13 anos, enquanto os postos de saúde oferecem pílulas do dia seguinte a jovens da mesma faixa etária. As iniciativas passam por cima de prerrogativas das famílias, mas as críticas dirigidas a elas são fulminadas pelo ministro como meras expressões de moralismo anacrônico. Os totalitarismos do século 20 se engajaram no culto à ciência e, paralelamente, nos projetos de abolição ou estatização da religião. Na URSS, a psiquiatria oficial definiu como distúrbio paranóico as idéias de luta pela verdade e pela justiça e os dissidentes foram internados em hospitais para doentes mentais. Na Alemanha, o teísta Hitler deflagrou o empreendimento eugênico de fabricação da raça pura. As sociedades democráticas separam a política da religião, mas não convertem a ciência num imperativo absoluto, incorporam ao debate público os valores de ordem ética e refletem sobre o sentido moral dos princípios religiosos. A tentação da eugenia se esconde atrás da manipulação de células embrionárias e, por isso, há um nítido interesse público na regulamentação dessa esfera da atividade médico-científica. A crítica ética ao aborto não é uma manifestação medieval de “homens conservadores que prescrevem como a sociedade deve controlar o corpo das mulheres”, na frase do ministro-militante, mas um componente da indagação existencial dos seres humanos. Temporão parece incapaz de entender isso - que, no entanto, é claro não apenas para religiosos, mas também para agnósticos. O ministro da Saúde se distingue positivamente sobre o pano de fundo de um Ministério nascido no caldo do fisiologismo. O médico sanitarista e planejador de saúde pública declarou, na hora da posse: “O Ministério da Saúde vai fazer política de Saúde; não fará política na Saúde.” A sua cruzada pelo aborto, contudo, é exatamente “política na Saúde” - e má política. Há argumentos ponderáveis para sustentar uma flexibilização da legislação sobre o aborto e o próprio Temporão apresenta alguns deles. Mas não é seu papel atuar como ideólogo hipnotizado por certezas absolutas, que desqualifica sem cessar a opinião divergente. Desconectado da realidade cultural brasileira, Temporão declarou que a descriminalização do aborto, um fenômeno essencialmente europeu, é “uma tendência mundial”. Em novembro, seu Ministério se articulou às ONGs feministas para fazer aprovar um relatório pró-aborto na 13ª Conferência Nacional de Saúde, mas uma ampla maioria de participantes derrotou a proposta oficial. Agora, sua cruzada pode arrastar o País para um plebiscito cheio de som e fúria, cujo desenlace só o ministro não adivinha. |
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
quinta-feira, março 20, 2008
Demétrio Magnoli Luzes e sombras
Arquivo do blog
-
▼
2008
(5781)
-
▼
março
(456)
- do Blog REINALDO AZEVEDO
- Ricardo Noblat Dilma é mãe duas vezes
- Clipping de 31/03/2008
- Clipping do dia 30/03/2008
- Clipping do dia 29/03/2008
- AUGUSTO NUNES- SETE DIAS
- O tribunal do tráfico em ação - O GLOBO
- Miriam Leitão Terreno fino
- Merval Pereira Manobra arriscada
- Dora Kramer Quinze minutos
- João Ubaldo Ribeiro As causas da dengue
- Daniel Piza
- ESTADÃO entrevista: Antônio Barros de Castro
- Alberto Tamer Economia americana resiste à recessão
- Mailson da Nóbrega A usina fazendária
- Suely Caldas A quem servem as elétricas
- Celso Ming
- Gaudêncio Torquato O fogo e a água
- A América se move
- FERREIRA GULLAR Uma questão teológica
- Eliane Cantanhede - Neo-aloprados
- Jânio de Freitas - O dossiê da maternidade
- A República dos dossiês Ruy Fabiano
- do Blog REINALDO AZEVEDO
- Celso Ming A enrascada argentina
- Miriam Leitão
- Merval Pereira Aliança ética no Rio
- Dora Kramer O fiador da reincidência
- FHC afirma que Dilma precisa demitir responsável p...
- RENATA LO PRETE "Pós-Lula", só em 2011
- RUY CASTRO
- MELCHIADES FILHO Ser mãe é...
- CLÓVIS ROSSI Carícias no pântano
- Fausto tropical
- VEJA Carta ao leitor
- VEJA Entrevista:Garibaldi Alves
- Lya Luft
- MILLÔR
- RADAR
- Roberto Pompeu de Toledo
- J. R. Guzzo
- Diogo Mainardi
- REINALDO AZEVEDO
- Corrupção Lula afaga os decaídos
- Cartões Assessora da Casa Civil é acusada de mo...
- Comentårio de Reinaldo Azevedo
- Aloprando no armazém
- O primeiro panelaço de Cristina Kirchner
- Tecnologia O maiô que produz recordes nas piscinas
- O reaquecimento das vocações pastorais no Brasil
- Placar expõe a luta do ex-jogador Casagrande contr...
- Cidades O vetor da dengue: descaso generalizado
- Hannah Montana, o novo ídolo das menininhas
- A classe C já é maioria e revoluciona a economia
- O conteúdo da rede agora em 3D
- Aeroportos tentam amenizar o tormento da espera
- A salada das mil calorias
- Ciência num lugar inesperado
- História A estupidez da censura guardada no Arq...
- Dicas para fazer um bom MBA
- Humor Riso com inteligência no Terça Insana
- Livros Para Ler Como um Escritor, de Francine P...
- Tratados de "pobrologia"
- O documentário de Scorsese sobre os Rolling Stones
- Nelson Motta AMIGO É PARA ESSAS COISAS
- O CRÉDITO E OS MOSQUITOS
- LULA, A ESFINGE SEM SEGREDOS
- Clóvis Rossi - Corrupção por quilo
- Míriam Leitão - Voltas do mundo
- Merval Pereira - No limite
- Luiz Garcia - Coisas municipais
- Com vento de popa
- Celso Ming - Pepino torto
- Dora Kramer - Continuidade entra na pauta
- Clipping de 28 de março
- BRAÇO DIREITO DE DILMA MONTOU DOSSIÊ
- Não falta ninguém em Nuremberg. Falta Nuremberg
- A vivandeira e o destrambelhado
- O espectro do blog ronda o comunismo
- Lula sai em defesa de "Severino Mensalinho"
- Míriam Leitão - Dois detalhes
- Merval Pereira - Armando o tabuleiro
- Jânio de Freitas - O escandaloso sem escândalo
- Eliane Cantanhede - O olho da cara
- Dora Kramer - Latifúndio improdutivo
- Clóvis Rossi - Desigualdade secular
- Celso Ming - A galinha do vizinho
- Clipping de 27/03/2008
- A candidatura de Alckmin
- FHC cobra dados de cartão de Lula, que reage e diz...
- Aula magna de FHC sobre despesas sigilosas
- PSDB se esforça para perder a sucessão de Lula
- Arrogância e audácia
- Dora Kramer - A sinuca do dossiê
- Celso Ming - Trégua nos mercados
- Paulo Rabello de Castro Esta reforma não reforma
- RUY CASTRO Datas
- Clóvis Rossi - Memórias e vergonhas
- Míriam Leitão - O saldo que cai
- Merval Pereira - Tragédia oculta
-
▼
março
(456)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA