A lei não serve |
O Globo |
6/3/2008 |
O objetivo pode ser de enorme interesse social - como impedir que motoristas embriagados saiam por aí provocando acidentes -, mas mesmo nesse caso a legislação e a ação das autoridades precisam observar determinadas regras e princípios. Por exemplo, bom senso e respeito à liberdade dos outros - como os não-motoristas. Além disso, a lei precisa estar de acordo com a Constituição e passar na pergunta: faz justiça? Na coluna de 7 de fevereiro último, argumentamos que a medida provisória que proibiu a venda de bebidas alcoólicas em bares, restaurantes e hotéis à beira de rodovias federais não passa nos testes do bom senso e do liberalismo. E também não passa no teste da Justiça, diz a criteriosa sentença da juíza federal Vellêda Bivas Osares Dias Neta, da 24ª Vara Federal do Rio de Janeiro, emitida em 15 de fevereiro. Com base em doutrinas (princípios da razoabilidade e da proporcionalidade) e na letra da Constituição, a juíza sustenta que a lei precisa cumprir três requisitos. Primeiro, a medida atende aos objetivos pretendidos? Segundo, haveria meio menos gravoso para atingir o mesmo fim? Terceiro, o benefício obtido compensa o ônus imposto aos cidadãos? O objetivo final pretendido pela MP é reduzir o número de acidentes nas rodovias, a partir da verificação empírica segundo a qual a maior parte dos desastres é provocada por motoristas embriagados. O meio escolhido é a proibição da venda de bebidas alcoólicas nos estabelecimentos às margens das rodovias. Segundo a juíza, a MP cai nos três quesitos. Não atinge o objetivo, pois não impede que o motorista consuma álcool, já que pode obtê-lo em muitos outros lugares. É um meio gravoso, pois prejudica os donos dos estabelecimentos comerciais (e seus empregados e consumidores não-motoristas) sem alcançar o objetivo nobre que é a redução do número de acidentes. E claramente há alternativa menos gravosa, que é a rigorosa fiscalização dos motoristas, com a aplicação maciça dos testes que medem o teor de álcool no sangue. A ação neste caso atinge diretamente o alvo. Logo, tudo considerado, o pífio resultado a ser obtido não compensa o ônus imposto aos cidadãos. Assim, a juíza Vellêda Dias Neta concedeu mandado de segurança e garantiu aos estabelecimentos associados ao Sindicato dos Hotéis, Restaurantes e Bares do Município do Rio o direito de continuarem vendendo bebidas alcoólicas nas margens das rodovias federais. Condenou a MP. Há recurso e o caso certamente continuará causando polêmica. Vale a pena o debate, pois essa MP dos bares reflete um viés autoritário e preguiçoso do poder público no Brasil. Como dá muito trabalho cumprir a lei já existente, baixa-se uma proibição geral que transfere o ônus para os cidadãos. Fiscalizar motoristas, individualmente? Melhor proibir a venda de bebidas. A Receita Federal tem dificuldade em saber se o contribuinte entregou a declaração no ano passado? Então exige que ele coloque o número do recibo do ano passado na declaração deste ano. O cidadão não guardou? Azar, vai para a fila da Receita. (Pressões posteriores levaram a Receita a fazer sua obrigação, oferecer o número do recibo pela Internet.) Outro caso: já existem leis estabelecendo os requisitos para que um carro circule por aí. Qualquer pessoa, a olho nu, percebe que há muitos veículos sem a menor condição. Se as autoridades fizerem seu serviço, tiram vários de circulação em qualquer esquina. Mas o que fez a prefeitura de São Paulo? Baixou uma norma pela qual todos os proprietários terão de levar seus veículos a um posto oficial para fazer a vistoria. Ora, o que farão aqueles cidadãos cujos carros estejam irregulares? Não vão aparecer na vistoria. Ficarão sem o certificado, mas como a prefeitura os apanhará? Pegando o cadastro geral de veículos, separando os certificados dos não certificados, verificando o endereço dos irregulares e mandando os fiscais em cada casa para recolher o carro. Ou fazendo fiscalização nas esquinas - tudo que poderia fazer desde já, sem torrar a paciência e sem avançar no bolso do contribuinte com a tal vistoria. E é tudo que não vai fazer também agora. Por que faria? Já não se baixou a norma rigorosa da vistoria? Podem reparar, todo dia sai uma coisa dessas. |
Entrevista:O Estado inteligente
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