Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

VEJA Entrevista: Marta Lagos

O termômetro latino

A diretora do Latinobarómetro diz que, depois da democracia,
latino-americanos querem reformas econômicas e sociais


Thomaz Favaro

Jefferson Coppola/Folha Imagem

"A maioria das sociedades da
região está sendo mudada por
meio de reformas paulatinas.
As rupturas são exceções"

A chilena Marta Lagos, 56 anos, sabe como poucos o que pensam e o que querem os latino-americanos. Lagos é fundadora e diretora executiva do Latinobarómetro, instituto de pesquisas com sede em Santiago que, desde 1995, monitora o apoio popular à democracia, as expectativas econômicas da população e a satisfação com seus governantes. Os resultados dos questionários aplicados em dezoito países da América Latina, totalizando mais de 19 000 entrevistas, formam o termômetro mais abrangente da aceitação, na região, de conceitos como democracia e economia de mercado. Depois de acompanhar o pensamento popular na América Latina nos últimos doze anos, Lagos afirma que o continente já descartou o autoritarismo e está passando por um processo de consolidação de suas democracias. Muitos latino-americanos, por outro lado, estão desiludidos com a economia de mercado como forma de combater a pobreza e gostariam de maior presença do estado em sua vida. Marta Lagos concedeu a seguinte entrevista a VEJA de um hotel em Paris, onde passava férias.

Veja – Pesquisas de opinião feitas por seu instituto mostram que na América Latina aumenta a desconfiança em relação aos partidos políticos e cresce o prestígio dos presidentes. Isso não é perigoso para a democracia?
Lagos – Isso é péssimo, pois cria um terreno fértil para o populismo. Partidos frágeis ajudam na eleição de caudilhos populistas. Se a Venezuela tivesse um sistema de partidos políticos bem estruturado, Chávez não poderia ter feito nem metade das coisas que fez. Os partidos funcionam como contrapeso da disputa política, ajudam a encontrar o equilíbrio entre as forças. Existe na América Latina uma demanda pela concessão de maiores poderes ao presidente. Isso é um erro. O estado é constituído por várias instituições, e cada uma deve cumprir o seu papel. Não cabe ao presidente assumir o controle de tudo.

Veja – O que falta para a consolidação da democracia na América Latina?
Lagos – Nos anos 80, o continente deu os primeiros passos necessários para recuperar as liberdades civis que caracterizam uma democracia. As eleições para a Presidência e para o Legislativo foram restabelecidas, voltaram os partidos políticos. Conquistada essa liberdade, os latino-americanos passaram a considerar necessária a realização de reformas econômicas e sociais. Trata-se, em resumo, de uma demanda por igualdade. Na Europa aconteceu a mesma coisa: houve um primeiro ciclo de demandas políticas. O ciclo seguinte foi de reivindicações econômicas e sociais. No caso dos europeus, esse processo levou três séculos para se consolidar.

Veja – Governantes populistas vendem a idéia de que vale a pena abrir mão da democracia em troca de reformas sociais. Como isso repercute na América Latina?
Lagos – Uma demonstração de que os latino-americanos abraçaram os valores democráticos pode ser encontrada no fato de que catorze presidentes foram depostos desde a década de 80 e em nenhum caso houve intervenção externa. Todos foram depostos de acordo com as regras dos próprios países. Nossas pesquisas mostram que os latino-americanos, hoje, descartam o autoritarismo e o militarismo. Estamos cansados de revoluções, de rupturas radicais, e preferimos consolidar o pouco que temos. Os entrevistados deixam claro que não querem retroceder, mas avançar. Os níveis de desigualdade social existentes na região, no entanto, dificultam a consolidação de nossos sistemas democráticos.

Veja – O modelo populista adotado pelos governos da Bolívia, do Equador e da Venezuela não representa um retrocesso?
Lagos – No processo de consolidação da democracia, muitos países estão refundando seu sistema político. Isso ocorre de duas formas. A primeira é por meio de reformas políticas e econômicas, como fez o Chile. A segunda depende de mudanças constitucionais, em busca de uma ruptura com o passado, como está sendo feito na Bolívia. Há outras maneiras de produzir mudanças num país. Uma delas é a guerra. A Europa mudou bastante com as guerras. Os grandes conflitos são passos civilizatórios que obrigam os povos a tolerar uns aos outros, a acertar as regras do jogo. Na América Latina não aconteceu nada parecido. Nunca tivemos grandes guerras nem grandes revoluções, exceto a cubana. Houve apenas alguns movimentos revolucionários inconclusos nos anos 60. As rupturas em curso na Bolívia e no Equador são uma exceção.

Veja – Por quê?
Lagos – A maioria das sociedades latino-americanas está sendo transformada por meio de reformas paulatinas. A complicação é que esse processo é bastante lento devido ao fato de raramente vir acompanhado por um consenso sobre que rumo o país deve tomar. Os avanços não são contínuos, às vezes damos alguns passos para trás. A consolidação democrática na América Latina poderia ter sido mais rápida se tivéssemos recebido ajuda externa. Portugal, Espanha e Grécia puderam deixar para trás seus regimes autoritários em espaço muito curto de tempo, na década de 70, porque foram apoiados pelos outros países europeus. Não tivemos nada disso na América Latina. Nós saímos sozinhos das ditaduras. Sem a ajuda do resto do mundo, nosso processo de democratização é difícil, com avanços e retrocessos.

Veja – Por que o restante do mundo mostra tanto desinteresse em relação à América Latina?
Lagos – Há três explicações. Primeiro, porque não temos armas nucleares. Segundo, porque não temos em andamento nenhum conflito relevante de cunho étnico ou religioso. Terceiro, porque não somos atrativos para o comércio mundial. Apesar de termos um grande mercado, com quase 600 milhões de habitantes, consumimos pouco. Isso faz com que a América Latina seja uma região esquecida. Não necessitamos de muita ajuda externa, mas tampouco estamos bem sem essa ajuda. Avançamos pouco a pouco, quase incógnitos.

Veja – Os venezuelanos mostram-se nas pesquisas um dos povos mais satisfeitos com a democracia. Como isso é possível sob o regime autoritário de Hugo Chávez?
Lagos – Há duas Venezuelas. A primeira, que representa 45% da população, pede a democracia institucional, universal, como todos nós conhecemos. A segunda Venezuela, com pouco mais de 50% da população, acredita que Chávez se desfez da velha elite política e econômica e se sente incluída na política. Esse tipo de "democracia à la Chávez" é o que parte dos venezuelanos aplaude, porque eles não conheceram nenhuma outra. Para eles não importa a liberdade das instituições, que na verdade nunca funcionaram muito bem. Na Venezuela, portanto, enfrentam-se dois conceitos muito distintos de democracia. Aquela criada pelo presidente Hugo Chávez é populista, dependente de uma só pessoa. Mas é bom olhar essa situação com cuidado: os venezuelanos não deram poder total a Chávez. Eles não querem um governo autoritário. Isso ficou claro no último referendo, em que a reforma constitucional que daria mais poderes ao presidente foi rechaçada.

Veja – Pode-se chamar o projeto político de Chávez de democracia?
Lagos – Trata-se de uma democracia defeituosa, com liberdades restringidas. Os venezuelanos deram, no último referendo, uma demonstração contundente de que não lhes interessa conceder poderes totais a Chávez. Eles não querem um governo autoritário. O grande trunfo de Chávez é que, antes dele, boa parte da população não tinha participação política alguma. Ele não pode colocar isso a perder.

Veja – Mesmo depois de cinco anos de crescimento econômico constante, suas pesquisas de opinião mostram os latino-americanos cada vez mais descrentes com a economia de mercado. Por quê?
Lagos – A insatisfação me parece justificável. Em nenhum país da região há um verdadeiro "mercado" digno do nome – competitivo, aberto e transparente. Temos muitos monopólios e cartéis, como no setor de telecomunicações. As condições para fazer negócios são restritivas. Veja o exemplo do mercado financeiro. Apenas dois em cada dez latino-americanos têm conta bancária. É natural que os outros oito se digam insatisfeitos com o mercado financeiro. É como se houvesse uma festa e me perguntassem o que eu achei dela, mesmo não tendo sido convidada. Pior: eu fico sabendo que a festa vai ser melhor da próxima vez, porque haverá mais mesas e cadeiras, mas nunca me chamam. Como eu poderia estar contente por haver uma festa? A reação dos entrevistados não é ideológica. Eles só querem fazer parte da festa. No dia-a-dia, se uma pessoa continua sem ter renda, acesso a crédito ou cartão de crédito para gastar, ela acaba recorrendo ao estado, exigindo educação, saúde e outros serviços públicos.

Veja – Os latino-americanos parecem estar sempre mudando de opinião sobre as privatizações. Ora são contra, ora a favor. Por quê?
Lagos – As privatizações foram acompanhadas de promessas de grandes benefícios, o que criou expectativas altas na população. Muitas vendas, no entanto, foram malfeitas. Algumas privatizações de serviços de água e luz, por exemplo, deveriam ter sido acompanhadas de programas de subsídios para diminuir o impacto da alta nos preços das tarifas. Isso coincidiu justamente com a crise asiática e houve anos de recessão na América Latina. Quando a situação econômica começou a melhorar, os serviços ficaram mais baratos e a imagem das empresas também melhorou. Ou seja, o que houve foi uma distorção: o problema não eram as empresas privadas em si, mas as condições em que algumas privatizações foram feitas.

Veja – Falta capital humano de qualidade na América Latina?
Lagos – De modo geral, a América Latina investiu muito em educação fundamental e ensino médio, e agora começamos a ver os resultados. A população educada, nos últimos vinte anos, aumentou enormemente. Enquanto isso, a educação universitária ficou para trás. Com o crescimento econômico, está emergindo uma nova classe média que vai fazer uma pressão brutal sobre esse sistema. Isso nos trará outro problema de capital humano: uma grande quantidade de jovens chegando às portas das universidades, mas não conseguindo vaga. O que vai fazer uma juventude que nasceu na democracia, recebeu direitos políticos e educação básica, mas não conseguiu acesso à educação universitária para competir no mundo globalizado? Esses se tornarão os latino-americanos mais insatisfeitos. Estamos criando profissionais sem lhes dar os instrumentos para trabalhar.

Veja – Suas pesquisas mostram que 43% da população latino-americana acha injusto que um trabalhador eficiente ganhe mais que seu colega ineficiente. Nossos problemas são culturais ou institucionais?
Lagos – Isso tem a ver com a desigualdade social. Historicamente, os pobres têm acesso limitado aos serviços educacionais, e quem estuda pouco ganha pouco. Esse fato leva à crença de que o pobre é injustamente castigado duas vezes: primeiro, por não ter recebido educação e, segundo, por ser mal pago. Esse é um tema cultural, pois faz com que a eficiência profissional dos outros seja vista como algo ruim, que deixa o pobre na rua. Falta na América Latina uma mentalidade econômica competitiva, como na Europa. A postura dos pobres acaba sendo a de esperar uma mudança de gerações para resolver o problema. Por isso, metade da população está satisfeita com a competição econômica e a outra metade reclama por mais justiça e igualdade social.

Veja – O continente deu uma guinada à esquerda nos últimos anos?
Lagos – A interpretação de que houve uma "esquerdização" do continente é leviana. As transformações na Bolívia, por exemplo, têm um fundo mais estrutural que ideológico. Lá, 34% da população fala línguas indígenas. Outros 30% são mestiços, gente que não fala outro idioma além do espanhol, mas que se sente ligada à cultura indígena. Somados, eles representam mais da metade da população e estão pedindo o reconhecimento dessa diversidade cultural. Querem incluir essas culturas na nação boliviana, e isso não é um processo ideológico. A inclusão política de diferentes culturas em um estado-nação já aconteceu há muito tempo na Europa. Trata-se de um processo de formação de uma nação, e não é exclusivo da Bolívia. Acontece no Equador, na Guatemala e, em menor escala, na República Dominicana. Dizer que é "esquerdização" é simplificar, reduzir a questão. No caso de Lula é o mesmo. Existe uma demanda pela resolução de problemas históricos do Brasil, como a redução da pobreza, da desigualdade, da criminalidade, que Lula traz à tona. As esperanças se colocaram sobre uma pessoa, um político de esquerda, mas as demandas são históricas.

Veja – Lula é o presidente mais bem avaliado pelos latino-americanos. Ele desempenha bem o papel de líder da América Latina?
Lagos – Claro que não. Alguns anos atrás havia uma expectativa de que finalmente a América Latina teria governantes em condições de liderar a região. Nenhum deles foi capaz de fazê-lo. Atualmente, seria natural que esse papel fosse desempenhado por Lula, o presidente do país mais poderoso e com boa imagem entre a população regional. Como ele não assumiu esse lugar, Hugo Chávez apareceu subitamente para ocupar esse vazio, falando em nome da América Latina para outras partes do mundo. Lula não está sendo o líder da região, apesar de ser visto como tal pelos latino-americanos. Já Chávez é um dos líderes com pior avaliação no continente, à frente apenas de Fidel Castro. Fernando Henrique, quando era presidente, disse-me: "O Brasil já ocupa todo o meu tempo". Imagino que com Lula deva se passar o mesmo.

Veja – Cuba não participa das pesquisas do Latinobarómetro. Vocês tentaram aplicar os questionários lá?
Lagos – Sim, de todas as maneiras. Estivemos a um centímetro de concretizar um acordo e já tínhamos o questionário aprovado. Na última hora o governo cubano decidiu colocar um observador deles ao lado de cada um de nossos entrevistadores. Com um funcionário do governo do lado, não íamos conseguir resposta alguma. Eles não entendiam por que nós não podíamos aceitar tal situação, pois para os cubanos isso é normal. Pode-se fazer um paralelo com a Hungria comunista, onde estive um mês antes da queda do muro de Berlim e o primeiro-ministro Imre Pozsgay me perguntou: "Por que você quer fazer pesquisas de opinião aqui? Nós já temos os resultados: 80% da população sempre apóia o governo". Ele me mostrou os dados, documentados, separados em tabelas. Estava piamente convencido de que essa era a realidade.

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