Um homem bom entre os maus
Viggo Mortensen renova a parceria com
Cronenberg em Senhores do Crime
Isabela Boscov
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Em Marcas da Violência, David Cronenberg e Viggo Mortensen descobriram possuir uma química potente o bastante para alterar a ambos: com a história de um homem bom que é secretamente mau, Cronenberg conseguiu tirar seu cinema do marasmo opressivo em que ele havia estacionado e reinventá-lo como algo ao mesmo tempo clássico e pulsante; e Mortensen reencontrou um traço que ficara apenas sugerido no seu início de carreira – a habilidade para ser alguém na superfície e outro alguém muito diferente sob ela. Parcerias assim, baseadas não propriamente na afinidade, mas na fertilização criativa, são um artigo raro, e é quase uma obrigação dos envolvidos retomá-las. De forma que, à maneira de Martin Scorsese e Robert De Niro, John Ford e John Wayne, ou Claude Chabrol e Isabelle Huppert, o cineasta e o ator desdobram agora o tema de seu primeiro trabalho em Senhores do Crime (Eastern Promises, Inglaterra/Estados Unidos/Canadá, 2007), que estréia nesta sexta-feira no país. Como no filme anterior, Mortensen é aqui um homem duplo – só que desta vez, ao contrário, é um homem mau que é secretamente bom.
À primeira vista, o cenário não poderia ser mais distinto: em vez de uma cidade pequena do ensolarado Meio-Oeste americano, como em Marcas da Violência,Senhores do Crime se passa numa Londres úmida e cinzenta, em que o submundo ameaça engolir o outro, o civilizado e ordenado. É neste que vive Anna (Naomi Watts). Parteira num hospital, ela atende uma garota de aproximadamente 14 anos, que morre ao dar à luz uma menina. O diário da morta está escrito em cirílico, que Anna, apesar de ser russa por parte de pai, não sabe ler. Dentro dele, há um cartão de um restaurante russo em Londres, que pode ser uma pista. Anna vai até lá, porque deseja avisar a família do falecimento. E é claro que o restaurante é o ponto em que seu mundo e o outro, o da violência, vão colidir fragorosamente.
O dono do estabelecimento, Semyon (Armin Mueller-Stahl), é um gângster, e sabe que o diário contém segredos que não podem ser divulgados. Seu filho e herdeiro, Kirill (Vincent Cassel), é um fraco, que disfarça a covardia com brutalidade. Se Anna tem alguma chance de escapar deles, ela está em Nikolai, o motorista da família, que é encarregado também de apagar as evidências criminosas deixadas pelos negócios. Nikolai é um gângster do terceiro escalão, o que significa que só não vai ter o mesmo fim que dá aos desafetos de seus patrões se se mantiver surdo, mudo e cego. Na interpretação arrebatadora de Mortensen, contudo, são justamente a impassibilidade, a calma e a serenidade os sinais de que se tem aqui um personagem de correntes profundas, e razões que só bem mais tarde se conhecerão. Com um trabalho que está na base do cinema de Cronenberg, o mais fisiológico dos diretores, o ator usa seu corpo – a magreza, a pele lisa e esticada, o cabelo esculpido, as tatuagens intrincadas adquiridas numa prisão siberiana – para comunicar aquilo que o personagem não pode dizer. Numa cena ultracomentada, Mortensen (que responde pela única indicação do filme ao Oscar), completamente nu, luta com dois assassinos chechenos num banho turco, e a violência é aterradora: não pode existir circunstância mais vulnerável do que essa para um homem, ou mais eficaz para transmitir o perigo que ele enfrenta.
Essas explosões são a pontua-ção, por assim dizer, que Cronenberg dá à narrativa de Senhores do Crime. Elegante, grave e pausado, filmado em tons escuros de vermelho e verde, o filme às vezes irrompe em sangue e desorganização – desde a abertura, em que uma parada na cadeira de um barbeiro termina numa degola grosseira, feita com uma faca cega. Nem um tiro é disparado: os personagens, aqui, são gente que mata de muito perto, para ter certeza de que a vítima expirou pela última vez. A imoralidade de Semyon e dos seus, assim, é mais do que decorrência do crime. É atávica, inata e portanto irredimível, e é dessa malevolência que Nikolai tem de esconder o que tem de diferente. O desfecho abrupto é a única ressalva ao filme, mas pelo menos não tira dele seu sentido: visto em conjunto comMarcas da Violência, Senhores do Crimenão deixa dúvida sobre o pessimismo de seu autor. Ser um homem secretamente mau, como o personagem de Mortensen no primeiro filme, exige agilidade e astúcia. Ser um homem secretamente bom entre os maus, como ele é aqui, exige muito mais – que se desista de toda e qualquer coisa boa ou limpa que a vida pode trazer.