Religião
O fogo eterno queima mesmo
O papa e um bispo da igreja anglicana tentam
reafirmar a realidade física do céu e do inferno
Jerônimo Teixeira
Vicenzo Pinto/AE | Max Nash/AP |
Bento XVI Cioso dos fundamentos do catolicismo, o papa diz que os padecimentos do inferno não são só metafóricos | N.T.Wright O bispo anglicano acredita que o céu terá uma realidade corpórea – e que não vai ficar no meio das nuvens |
As religiões neopentecostais, com seus exorcismos e cultos performáticos, são hoje as que mais fazem alarde do céu, do inferno e do demônio. Entre os fiéis das igrejas tradicionais, as retribuições da vida eterna se tornaram um tanto abstratas, um recurso didático para incutir princípios morais nas crianças. É como se as igrejas mais antigas houvessem se secularizado, relegando idéias que antes inspiravam temor (o inferno) e esperança (o céu) para o plano das figuras de linguagem. É em resposta a esse enfraquecimento de princípios que alguns líderes religiosos vêm reafirmando a verdade física do céu e do inferno. No ano passado, o papa Bento XVI reiterou, em um sermão para fiéis de Roma, que o inferno não é uma imagem literária – trata-se realmente de um lugar onde as pessoas queimam por toda a eternidade. E uma das maiores autoridades teológicas da igreja anglicana, o bispo N.T. Wright, de Durham, na Inglaterra, acaba de lançar um livro que pretende esclarecer a natureza do céu – que é, defende o autor, bem menos etérea do que se imagina.
A pregação direta e assustadora de Bento XVI não diverge da linha dura que ele vem imprimindo a seu papado. O papa anterior, João Paulo II, amainou um tanto a noção de inferno, definindo-o como um lugar em que Deus está ausente. Cioso dos fundamentos do catolicismo, Bento XVI não faz mais do que relembrar o que está nos textos sagrados. O capítulo 25 do Evangelho de São Mateus, para ficar em um exemplo, é inequívoco: os colocados à esquerda de Deus, que não deram de beber a quem teve sede nem alimentaram quem teve fome, serão banidos "para o fogo eterno destinado ao demônio e seus anjos". A definição do bispo Wright para céu vai um pouco mais longe: ele não apenas reafirma os textos sagrados, mas também tenta desmontar uma interpretação supostamente equivocada do Novo Testamento. Em seu livro Surprised by Hope (Surpreendido pela Esperança), o teólogo anglicano contesta a visão do céu como um lugar elevado, um paraíso espiritual no meio das nuvens. Os fiéis não vão ascender aos céus, diz Wright – é Jesus que descerá à Terra, unificando-a com o plano divino. E não se viverá apenas em espírito: no Juízo Final, haverá a ressurreição da carne. Os fiéis se levantarão para tomar seu lugar junto a Jesus.
O bispo ampara-se em passagens das epístolas de São Paulo para sustentar essa visão. Ainda que seu cenário apocalíptico tenha base bíblica, ele se choca com a iconografia cristã – basta pensar nas inúmeras pinturas renascentistas em que o céu é representado nas alturas, como um oposto exato do inferno subterrâneo. Wright diz que a visão dos mestres renascentistas provém de uma deturpação das concepções judaicas originais. "Ainda que escrito em grego, o Novo Testamento é profundamente judaico, e os judeus intuíam que a ressurreição final seria física, não só espiritual", disse o bispo em entrevista à revista Time. A influência da filosofia grega de Platão sobre o cristianismo primitivo teria pervertido essa noção, fixando a idéia de um céu espiritual e idealizado.
A continuidade da vida após a morte tem sido um princípio fundamental de muitas religiões. Na mitologia grega, os mortos destinavam-se ao mundo sombrio do deus Hades, guardado por monstros como Cérbero, o cão de muitas cabeças – não é de estranhar que Hades seja freqüentemente traduzido como "inferno". As religiões monoteístas – e em particular o cristianismo – fixaram a idéia de um mundo pós-morte dividido em zonas antípodas, o céu e o inferno (com uma zona intermédia no purgatório). No século XIV, a Divina Comédia,monumental poema do italiano Dante Alighieri, deu a configuração literária definitiva a essa cosmologia. O curioso é que o Inferno de Dante, com suas descrições detalhadas e sensoriais de todo tipo de tormento e tortura, é muito mais concreto do que o Paraíso, um lugar luminoso mas pouco palpável. "Dante foi acusado de pintar um frio retrato de Deus no Paraíso, mas a abstração nos lembra que em última análise nada conhecemos dele", diz a historiadora da religião Karen Armstrong em Uma História de Deus. O mesmo se verifica agora, quando líderes religiosos tentam restabelecer a realidade física ao além: o inferno do papa parece mais real do que o estranho céu do bispo anglicano.