Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 16, 2008

O drama de Joanna Maranhão

Uma dor sem tamanho

A nadadora Joanna Maranhão afirma que sofreu abuso
sexual de seu técnico quando tinha apenas 9 anos


Silvia Rogar

Jaqueline Maia/DP
"Senti raiva pela traição de confiança dele e culpa por não ter ouvido o que a Joanna tentou me contar naquela época."
Teresinha Maranhão, mãe de Joanna

Joanna Maranhão tinha 9 anos em 1996 e já era uma promessa na natação. De uma hora para outra, começou a não querer treinar. Bateu pé, chorou e acabou convencendo a mãe, a médica Teresinha de Albuquerque Maranhão, a mudá-la de clube. Também não quis mais freqüentar a casa de seu treinador, Eugênio Miranda. A reação surpreendeu Teresinha. Ela e o marido haviam se tornado amigos de Eugênio, então com 37 anos, casado e pai de um menino e uma menina com idade próxima à de Joanna. Nas férias, as duas famílias passavam fins de semana juntas na Ilha de Itamaracá, perto do Recife. E volta e meia a aluna dormia na casa do professor. Depois da mudança, perderam completamente o contato. Na semana passada, aos 20 anos, Joanna veio a público acusar Eugênio de ter abusado sexualmente dela. Devido ao tempo decorrido, é impossível ter provas do que realmente aconteceu. Mas o relato de seu sofrimento é impressionante (veja a entrevista abaixo). Naquela ocasião, Joanna tentou conversar com a mãe. Não foi ouvida. "Ela veio falar de um carinho mais íntimo, mas achei aquilo absurdo, parte de uma fantasia. Além de bom técnico, o Eugênio era uma pessoa bacana", disse Teresinha a VEJA.

Os anos de adolescência foram difíceis para Joanna. Ela se tornou agressiva, deprimida e passou a sofrer de insônia. Quando viajava para competições de natação, preferia dividir o quarto com meninas de equipes rivais a dormir desacompanhada. Não suportava ficar sozinha. Há dois anos, numa noite de profunda angústia, decidiu se abrir novamente com a mãe. "Foi muito doloroso. Senti raiva pela traição de confiança dele e culpa por não ter ouvido o que a Joanna tentou me contar naquela época. Eu trabalhava até doze horas por dia, não tinha horário fixo. Parei para rever esses valores desde então", diz Teresinha, 48 anos. Atualmente, Joanna namora um estudante de direito, faz terapia e tratamento com antidepressivos. No esporte, não passa por uma boa fase. Na Olimpíada de Atenas, ela chegou à final da prova de 400 metros medley, um feito inédito entre nadadoras brasileiras nos 56 anos anteriores. Hoje, ainda não alcançou índice que lhe permita participar da Olimpíada de Pequim. Desde que Joanna decidiu expor sua história, Eugênio foi afastado pela direção do colégio onde é treinador de natação. A VEJA, ele negou as acusações e informou que, nesta semana, entrará na Justiça com ações criminal e cível contra a mãe de Joanna, que revelou seu nome à imprensa. O técnico alega que o rompimento das duas famílias se deu por causa de uma rixa de clubes. Joanna treinava com ele no Náutico e teria sofrido pressões para voltar ao Português, onde começou a nadar e era vista como prata da casa. "Ela se ausentou e não nos falamos mais. Não procurei saber o que tinha acontecido", disse.

A história contada por Joanna expõe uma das relações mais cruéis que se podem estabelecer entre dois seres humanos. A pedofilia é um crime no qual a criança é vítima de uma pessoa maior, mais forte e, pior, de alguém em quem confia e a quem admira. Atualmente, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos recebe 32 registros diários de crianças e adolescentes que sofreram violência sexual – quase sempre, dentro de casa. No caso de profissionais como treinadores esportivos, a confiança parte dos pais, que os apresentam aos filhos como bons exemplos. Por isso é tão difícil para a criança acreditar que está sendo vítima de tamanha barbaridade. "O abusador se aproveita desse vínculo para garantir o segredo. A criança tem medo e vergonha de contar a outros adultos o acontecido", diz Renata de Assis, titular da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima, no Rio de Janeiro.

Por isso as histórias vêm a público com tanto atraso. A bielo-russa Olga Korbut, uma das maiores ginastas de todos os tempos, cuja marca registrada era o par de maria-chiquinha no cabelo, chocou o mundo em 1999 ao revelar, mais de duas décadas depois de seu auge, que ela e suas companheiras de esporte sofriam abusos freqüentes dos treinadores soviéticos nos anos 1970. Renald Knysh, seu técnico desde os 8 anos, seria o mais atroz deles. "Muitas ginastas não eram apenas ‘máquinas esportivas’, mas também escravas sexuais dos treinadores", disse. Outro caso de repercussão ocorreu em 2004, quando o australiano Gavin Hopper, que foi técnico da tenista Monica Seles, foi preso sob acusação de ter abusado de uma aluna nos anos 1980. Em 1995, Paul Hickson, técnico da equipe de natação britânica na Olimpíada de Seul, foi condenado a dezessete anos de prisão por ter abusado sexualmente de meninas que freqüentaram suas aulas, em diferentes escolas. De lá para cá, praticamente todas as federações esportivas do Reino Unido criaram guias de conduta para professores que lidam com crianças.

Por aqui, o crime costuma ter pena branda: a condenação vai de quatro a dez anos. Mesmo nos casos em que o algoz é punido, no entanto, é a família da vítima que sofre as piores conseqüências. "A criança é violentada por um código que não conhece e por alguém que admira. E os pais têm dificuldade de escutar os filhos e carregam uma enorme culpa quando descobrem o que se passou", diz a psicanalista especializada em infância Luli Milman, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

 

"NINGUÉM SUPERA ISSO"


Satiro Sodrê/CBDA
A nadadora Joanna Maranhão: silêncio de onze anos rompido agora


Você lembra o que passou pela sua cabeça quando começou a ser molestada? 

Na primeira vez que aconteceu, eu não tinha a menor noção de sexualidade. Muitas coisas passaram pela minha cabeça. Será que isso é normal? Será que ele tem o direito de fazer isso? Eu só sabia que era uma coisa que doía, me machucava e não me fazia bem. Eu estava sozinha com ele na piscina. Foi um susto. E doía.

O que ele falava?
Ele me mandava ficar calada e às vezes me mandava rir. Pedia para eu guardar segredo. Eu dizia: "Pelo amor de Deus, pára".

Você já tinha começado a desenvolver corpo de adulta?
Só menstruei com quase 16 anos. Eu era uma criança, com corpo de criança.

Você achava que ele fazia o mesmo com outras meninas?
Não. O relacionamento que a gente tinha era muito próximo. Não conseguia imaginá-lo fazendo isso com outra criança.

Você sabia que ele estava fazendo uma coisa errada?
Não sabia se era certo ou errado. Comecei a querer distância quando aconteceu um episódio na casa dele. Foi o pior de todos, prefiro não entrar em detalhes. Ali eu me acabei de chorar e falei: "Me leve para casa agora".

Na casa dele?
Foi quando as coisas realmente aconteceram, entendeu? Depois do treino, ele estava me levando para casa e parou antes na casa dele. A mulher estava trabalhando e as crianças estavam na escola.

A sua família e a dele eram amigas?
Sim. Éramos muito amigos. Ele, a mulher e os filhos ficavam sempre com a gente nos fins de semana. Eu ia muito à casa deles. Uma noite, eu estava dormindo com a filha dele, uns três anos mais nova, e vi que ele se aproximava. A imagem que me vem é a da sombra dele parado, me olhando. Nessa noite, eu comecei a chorar, chamei a mulher dele e disse: "Quero ir para casa". E foi a última vez que fui à casa dele.

Por quanto tempo você foi molestada?
Uns dois meses. Eu treinava de manhã e estudava à tarde. A equipe era pequena, por isso ele tinha mais oportunidade. Mudei para a tarde, mesmo perdendo aulas. Como havia mais gente, ele parou. No fim do ano, falei para a minha mãe que não estava nadando bem e queria sair. Para ele, nem falei nada. Depois das férias, troquei de colégio e de clube. Foi uma tentativa de mudar tudo e começar do zero.

Quando você disse para sua mãe que queria mudar, tentou explicar o motivo?
Foi a única vez que tentei tocar no assunto. Disse algo assim: "Acho que ele fez alguma coisa, mas não tenho certeza". Esperava que ela entendesse, mas ela falou: "Não, minha filha, você interpretou errado, é coisa da sua cabeça. Nunca mais pense nisso e vamos tocar a vida para a frente".

Em 2005, seu rendimento na piscina baixou. Você diz que nesse mesmo ano o abuso que tinha sofrido voltou à lembrança. As duas coisas estão relacionadas?
Mais ou menos. As lembranças não voltaram da noite para o dia. Eu sempre soube o que tinha acontecido comigo, mas não recordava todos os fatos nem a gravidade deles. Quando lembrava, pensava em outra coisa. Aí decidi fazer terapia, por vários motivos, mas principalmente porque não estava conseguindo retomar minha vida. Comecei a reviver tudo. Aos 9 anos, quando já tinha mudado de clube, tive pânico de dormir sozinha e passei três anos me tratando com uma psicóloga, mas nunca falei sobre os abusos. Quando ela me perguntava por que só queria dormir com meus pais, eu falava que era medo de filme e de escuro.

O que a levou a revelar tudo para sua mãe em 2006?
Eu estava muito debilitada, com depressão, dormia mais de catorze horas por dia. Como me senti melhor depois de falar com meu terapeuta, resolvi contar para minha mãe e para o meu namorado, com quem estou há três anos. Parece que eu vomitei tudo e me senti 300 quilos mais leve. Você não tem noção da felicidade que sinto sabendo que minha família e meus amigos compreendem o que aconteceu.

Sua mãe deve se arrepender muito de não ter tentado entendê-la desde o começo. 
É verdade. Mas ela não tem culpa de nada. Quando eu finalmente contei tudo, ela me pediu desculpas, como faz até hoje, e chorou muito. Era como se quisesse me colocar no colo. Meu pai sabe por alto. Quando falei com minha mãe, ela e meu pai já estavam separados. Ele deve estar sofrendo calado.

Fazendo terapia e tendo revelado seu drama, você acha que superou o trauma ou só aprendeu a conviver com ele?
Aprendi a conviver, e essa foi minha maior vitória até agora. É o tipo de coisa que ninguém supera. Até hoje, não consigo falar tudo. Sinto alguma coisa muito ruim quando começo a verbalizar. Não sei nem se é dor. É um aperto que dá.

Sandra Brasil


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