Briga pelas jóias de família
Será editado ou ficará na gaveta? Um diário escrito por
Guimarães Rosa na Alemanha divide os herdeiros do escritor
Jerônimo Teixeira
Reprodução |
2 de novembro de 1940 |
Este é o ano do centenário de Guimarães Rosa. Como toda efeméride literária, esta será acompanhada de homenagens, exposições, ciclos de palestras. Uma estátua do autor de Grande Sertão: Veredas deve ser erguida em Copacabana, no Rio de Janeiro, próximo à representação já existente de Carlos Drummond de Andrade. Mas uma certa dose de controvérsia assola as celebrações. A recente divulgação de trechos de um diário íntimo do escritor mineiro pela revistaBravo!, da Editora Abril, que também edita VEJA, expôs antigas rusgas entre seus herdeiros. O representante da viúva de Guimarães Rosa, Aracy Moebius de Carvalho, deseja ver esse documento publicado logo, enquanto as filhas do primeiro casamento dele relutam em aceitar a edição. Escrito entre 1939 e 1941, ao tempo em que o autor, que era diplomata de carreira, servia como cônsul adjunto em Hamburgo, na Alemanha, o diário atiça a curiosidade dos admiradores de Rosa. As mesmas filhas que vêm postergando sua publicação estão se empenhando em uma empreitada polêmica: impedir a circulação de Sinfonia Minas Gerais, biografia de Guimarães Rosa recentemente publicada pelo advogado Alaor Barbosa. "A única biógrafa do papai sou eu. Ninguém pode escrever uma biografia sem o consentimento das filhas, herdeiras do nome e da imagem de Guimarães Rosa", diz Vilma Guimarães Rosa, filha mais velha do escritor.
A primeira mulher de Guimarães Rosa, Lygia Cabral Penna, ficou no Brasil, com as duas filhas, quando o marido – que então ainda não publicara livro algum – partiu em sua missão para a Alemanha, em 1938. Foi em Hamburgo que Guimarães Rosa conheceu Aracy, funcionária do consulado que seria sua segunda mulher. O casal teve uma atuação corajosa no salvamento de judeus, fornecendo passaportes para que fugissem da Alemanha nazista. As referências do diário à segunda mulher – que hoje vive em São Paulo e está para completar 100 anos – constituem um assunto sensível para as filhas do primeiro casamento, ainda que Vilma tente negá-lo: "Ela não aparece tanto assim", diz. De fato, as referências a Ara (como Rosa a chamava) são quase sempre casuais – miudezas cotidianas como "Ara trouxe cerejas" ou "Comi a macarronada de Ara". Ainda que seja um registro pessoal, o diário é recatado, e notas mais sentimentais, como a do passeio com Aracy em meio aos amores-perfeitos (leia trechos no quadro abaixo), são esparsas. Mas, claro, estão lá – ao lado de descrições de bombardeios, citações de Baudelaire e Eça de Queiroz, observações sobre a culinária alemã e registros do trabalho em contos que comporiam o livro Sagarana. "O diário é fragmentário, heterogêneo. E, por essa variedade, ele tem importância histórica, cultural e literária", afirma o professor de literatura Reinaldo Marques, que fez parte da equipe da Universidade Federal de Minas Gerais que, a partir de uma cópia, preparou o texto para uma possível edição conjunta pela Editora UFMG e pela Nova Fronteira, que publica as obras de Guimarães Rosa.
Trechos do diário já vêm vazando há algum tempo. Neste mês, a revista Bravo!dedicou sua capa ao tema, reproduzindo excertos inéditos, o que causou alguma irritação às filhas. Vilma garante que um dia publicará o diário – mas purgado de qualquer passagem que considere comprometedora. "A obra do meu pai pertence à humanidade, mas não há razão para a humanidade nos devorar. Não vamos apressar a publicação", diz. O advogado Eduardo Tess Filho, representante dos direitos de sua avó, Aracy, sobre a obra de Guimarães Rosa, tem outra posição: quer ver o diário publicado na íntegra, de preferência ainda neste ano. As duas partes contam versões conflitantes sobre os originais do diário, hoje em poder da filha mais velha. Vilma diz que o pai lhe deu o diário de presente, pouco tempo antes da morte, em 1967. Tess afirma que o diário sempre pertenceu à sua avó – e que Vilma o tomou emprestado, no início dos anos 70, e nunca o devolveu.
Alaor Barbosa não leu o diário para comporSinfonia Minas Gerais – obra que se apresenta como biografia, mas é antes uma cronologia malcosturada da vida de Rosa. Barbosa cita extensamente o livro de memórias da própria Vilma,Relembramentos. Essas citações irritaram Vilma, que acusa o autor de copiar seu livro. Uma notificação dos advogados de Vilma e de sua irmã Agnes já foi encaminhada à LGE Editora, que publicouSinfonia. O objetivo é retirar o livro de circulação – e impedir a publicação da anunciada segunda parte da obra. "Querem vetar meu direito não só de publicar, mas até de escrever. Isso não existe em uma democracia", protesta Barbosa. Os advogados das filhas centraram sua argumentação no confuso artigo 20 do Código Civil, que protege a imagem e a honra. Em casos anteriores – como a ação movida por Roberto Carlos contra a biografia escrita por Paulo Cesar de Araújo –, esse artigo já foi interpretado como uma proibição terminal contra qualquer biografia não-autorizada. É melancólico que o nome de um dos maiores escritores do Brasil acabe associado a esse cerceamento da liberdade de expressão.
Bombas e amores-perfeitos Trechos do diário que Guimarães Rosa manteve em
25 de outubro de 1940 O ataque de ontem foi o mais sério e terrível de quantos houve até hoje. Das 9 e 30 até as 3 e 30, e depois das 4 até as 6 da manhã. Sempre com tiros e bombas tremendas. Parece que inaugurou para nós uma nova fase da guerra aérea. Será que começou mesmo o fim do mundo?! O trovão das bombas se repetia, infernal. Havia corpos estranhos, como flechas luminosas e coloridas, horizontalmente no ar, em enfiada pela Rothenbaumchanssee. |