Um crime nada delicado
Como o roubo de pinturas famosas financia
o tráfico de armas e drogas e até o terrorismo
AFP |
Rapaz de Colete Vermelho, de Cézanne: arrancado do museu suíço |
No domingo passado, em Zurique, na Suíça, homens armados invadiram o museu Bührle e roubaram quatro obras-primas do século XIX: Rapaz de Colete Vermelho,de Paul Cézanne,Amendoeira em Flor,de Vincent van Gogh,Papoulas em Vétheuil,de Claude Monet, eConde Lepic e Suas Filhas, de Edgar Degas. O conjunto de pinturas foi avaliado em 163 milhões de dólares. Valor astronômico? Ele representa uma fração modesta de um total muito maior. Estima-se que o roubo de arte movimente atualmente algo entre 4,5 e 6 bilhões de dólares por ano. Pior ainda, há muito mais do que a perda financeira nesse tipo de crime. Há também a perda cultural e um fato sobre o qual os especialistas não têm mais dúvidas: a ligação entre o crime organizado e o roubo de arte. "Quadros famosos e antiguidades são ferramentas para financiar outros crimes", diz a inglesa Sarah Jackson, diretora do Art Loss Register, entidade internacional de catalogação de obras desaparecidas. "A pilhagem a museus está, com freqüência alarmante, relacionada ao tráfico de armas e de drogas, e até mesmo ao terrorismo", acrescenta o historiador americano Noah Charney, fundador do Arca, um centro de estudos sobre crimes contra o patrimônio artístico.
Segundo Charney – autor de um romance,O Ladrão de Arte, que em breve deverá ser lançado no Brasil –, o colecionador excêntrico que comissiona um roubo para seu deleite pertence ao mundo da ficção. "Recentemente, a historiadora Silvia Loretti levantou indícios de que Pablo Picasso encomendou, no começo do século XX, o furto de duas estatuetas do Louvre. Ele as usou na composição do quadro Demoiselles D’Avignon e as deixou escondidas num armário de sua casa por anos. Essa é uma história pitoresca, não é? Mas são raríssimas as que se encaixam na mesma categoria", diz Charney. Foi a máfia marselhesa que deu ao roubo de arte os seus contornos atuais. No começo da década de 60, ela atacou coleções públicas e particulares na Riviera Francesa e, em 1976, num assalto espetacular, retirou 180 obras do Palácio Papal de Avignon. Começou a se formar ali um mercado negro internacional, no qual obras-primas podem ficar mergulhadas por anos, negociadas por valores não superiores a 5% ou 10% do que alcançariam num leilão legítimo. Raramente elas são vendidas por si sós. Costumam entrar em barganhas na aquisição clandestina de armamentos, por exemplo. Há quarenta anos investigadores acumulam evidências sobre esse tipo de negócio escuso. A polícia com maior tradição nesse campo é a italiana, seguida pela Scotland Yard, da Grã-Bretanha.
O interesse do crime organizado por obras de arte lança uma luz preocupante sobre o furto de um Picasso e de um Portinari do Museu de Arte de São Paulo (Masp), no fim do ano passado, e sobre o roubo de um Matisse, um Monet, um Dalí e um Picasso do Museu Chácara do Céu, no Rio de Janeiro, em 2006. Antes disso, o país conhecia dois tipos de crime: o voltado para as peças sacras e o voltado para livros e outros documentos raros. O primeiro é "tradicional" – ocorre talvez há 100 anos. O segundo ganhou força no fim dos anos 90, mas recebeu um forte golpe em 2007, quando a Polícia Federal desbaratou a principal quadrilha que atuava nesse campo. O ataque à arte moderna no Rio de Janeiro e em São Paulo é atípico e representa uma novidade.
Dos quadros do Chácara do Céu só foram encontrados até hoje restos de moldura num morro carioca. No caso do Masp, as telas foram recuperadas treze dias mais tarde. Três homens estão presos, acusados de participar do crime (veja o quadro). Apesar dos desfechos opostos, as provas reunidas respectivamente pela Polícia Federal e pela Polícia Civil indicam semelhanças entre os crimes. Nas duas situações, as telas retiradas dos museus constavam de listas que os ladrões carregavam – sinal de que um receptador desconhecido fez a encomenda. "É um crime compartimentado", diz o delegado Adilson Marcondes, responsável pela investigação do crime do Masp. "Nós prendemos os ladrões. Supomos que haja gente acima deles." A hipótese de que os quadros iriam para fora do Brasil é forte. Em março de 2006, poucos dias depois do roubo no Chácara do Céu, a tela de Matisse apareceu num site bielo-russo de leilões virtuais. "Esse é o lado escuro da globalização", afirma o coordenador-geral da Interpol no Brasil, o delegado Jorge Pontes. "O crime também descobre novas rotas pelo mundo. E isso impõe novos desafios aos museus e à polícia brasileiros."
"Museu brasileiro só tem lixo"
Para a polícia, tudo indica que o líder do furto no Masp foi Robson de Jesus Jordão, o Robinho. Ladrão da pesada, ele teria recebido a encomenda de um receptador ainda não identificado. A Moisés coube o planejamento. Além de criar uma tática para a invasão do museu, ele teria estudado uma lista de quinze alvos em potencial, selecionando os quadros mais atraentes segundo seus conhecimentos sobre arte. Moisés afirma que encontrou seus cúmplices "na balada". Mas por que teria se envolvido com a bandidagem? Ele diz que resolveu participar do crime pelo "desafio". No dia do depoimento de Moisés, VEJA teve um rápido diálogo com ele:
Por quê? E você, tinha o hábito de freqüentar o Masp? Moisés explicou que seu QI é de 145. Quando alguém na delegacia comentou por engano que o Retrato de Suzanne Bloch, uma das telas furtadas do Masp, pertencia à "faixa azul" de Pablo Picasso, ele fez questão de corrigir: "Faixa azul, não. Fase azul". E depois foi embora algemado. |