Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Negligência bovina


Editorial
O Estado de S. Paulo
1/2/2008

O bife brasileiro está proibido na União Européia, para alegria dos criadores de gado irlandeses e de outros defensores do protecionismo. Não podem competir com a pecuária do Brasil, mas podem ser protegidos por barreiras comerciais. Se tiverem um mínimo de polidez, não deixarão de agradecer às autoridades brasileiras pela ajuda prestada. O governo federal tem dado e continua a dar, por seu desleixo, uma preciosa colaboração a todos os concorrentes interessados em deter o avanço da pecuária brasileira nos mercados estrangeiros. No ano passado, essas vendas proporcionaram US$ 1 bilhão de receita comercial. Esse dinheiro tem sido ganho graças ao trabalho de produtores modernos e competentes, mas não se deve esperar dos concorrentes estrangeiros o reconhecimento desse fato.

A suspensão das importações foi anunciada oficialmente na quarta-feira pelo comissário de Saúde da União Européia, Markos Kyprianou. Foi a conseqüência previsível da combinação de dois fatores, a crescente pressão protecionista de produtores europeus, cada vez mais barulhentos em sua campanha contra a carne brasileira, e a persistente negligência das autoridades de Brasília.

As pressões, queixas e críticas dos europeus repetiram-se durante meses. Autoridades da União Européia cobraram, insistentemente, providências brasileiras para o atendimento dos padrões de controle sanitário adotados pelo bloco. Pressionadas por entidades dos produtores e por seus porta-vozes políticos, essas autoridades evitaram, durante longo período, a adoção de medidas contra as importações do produto brasileiro. Deram tempo ao Ministério da Agricultura para responder de forma adequada e mostrar, pelo menos, um sério empenho na solução dos problemas. No Ministério, ninguém deu sinal de ter percebido a gravidade do problema. O Palácio do Planalto exibiu uma indiferença ainda maior, como se ninguém, nas proximidades do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fosse capaz de perceber o risco e de cobrar do ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, uma séria informação sobre o tema.

A negligência do governo brasileiro deixou às autoridades européias toda a iniciativa nesse jogo perigoso, onde os lances podem comprometer, facilmente, centenas de milhões de dólares. Aberto o espaço para o ataque europeu, representantes de Bruxelas definiram as condições para o Brasil atender à exigência de identificação de origem do gado abatido para exportação. Usando seus critérios, veterinários europeus calcularam em apenas 3% o número de fazendas capazes de atender aos seus padrões de controle sanitário. Só deixaram às autoridades de Brasília o trabalho de apresentar uma lista correspondente a essa porcentagem - cerca de 300 propriedades.

O governo brasileiro apresentou, em partes, uma relação de 2.600 fazendas de vários Estados. As autoridades de Brasília alegaram não poder selecionar, de forma arbitrária, uma lista de apenas 300, num grande universo de propriedades em condições de cumprir a tarefa de rastreamento. A explicação é aceitável, mas, naquela ocasião, já era inútil diante da ofensiva européia. O governo brasileiro havia deixado o problema crescer até ficar fora de seu controle. Os protecionistas irlandeses puderam festejar. Segundo o presidente da Associação de Fazendeiros da Irlanda, Padraig Walshe, a União Européia, durante anos, deu ao Brasil a oportunidade de pôr em ordem seu sistema de controle. O Brasil, disse ele, não entendeu o recado. O interesse de Walshe, obviamente, não era ver o governo brasileiro fazer a sua parte e garantir o prosseguimento das exportações. Mas a negligência de Brasília ainda lhe deu a oportunidade de recitar uma lição de moral.

Fora do governo, qualquer pessoa razoavelmente informada podia perceber o perigo de novas medidas protecionistas e a ameaça foi apontada várias vezes nesta página. O Estado publicou, há poucos dias, uma foto de um posto de fiscalização abandonado na divisa com o Paraguai. Passados mais de dois anos desde o último surto de aftosa em Mato Grosso do Sul, nada parece haver melhorado no sistema de controle sanitário.

Novos problemas ainda podem vir por aí. A Organização Internacional de Saúde Animal prepara, segundo se informou em Paris, um relatório severo sobre o controle sanitário no Brasil. O documento dará novas armas aos protecionistas.

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