A questão ética continua a assombrar o governo petista, que chegou ao poder cavalgando uma mensagem de mudança na política e hoje é cavalgado por espertalhões de todos os quilates, que relativizam o antigo compromisso ético do partido, tentando medi-lo pelo maior ou menor montante de dinheiro público desviado, ou compensar transgressões cada vez mais freqüentes com supostas atitudes em favor dos mais desfavorecidos. No caso do desvio do uso dos cartões corporativos, tentam minimizar os malfeitos alegando que representariam uma quantia ínfima, irrisória, que não mereceria todo esse estardalhaço se não envolvesse uma luta de poder.
Assim como já atribuíram as denúncias do mensalão a uma conspiração midiática a favor da oposição. Com relação à ética na política, é comum a petistas alegarem que num país como o Brasil, com tantas desigualdades, o compromisso ético do governante tem que ser com os menos favorecidos. Por esse raciocínio, um programa como o Bolsa Família, por exemplo, eximiria o governo de culpa por uma corrupção ou outra que se encontre eventualmente pelo caminho.
Mas há os que ainda tentam retornar a uma suposta origem petista de atuação diferente da "política tradicional", como se algum dia esse pressuposto houvesse prevalecido dentro do partido, e como se a "política tradicional" houvesse contaminado os "petistas puros" com todos os desvios de conduta que são registrados permanentemente desde o início do governo Lula.
O novo secretário-geral do partido, o deputado José Eduardo Cardozo, faz parte desse grupo de críticos que considera que o antigo núcleo decisório do PT aderiu às práticas da política tradicional, levando-as para dentro do partido. Quando derrotado à presidência, ele assinou, com o ministro da Justiça, Tarso Genro, um manifesto que afirmava:
"Rechaçamos esta lógica que introduz de fora para dentro do nosso partido elementos da política tradicional, historicamente recusados pelo PT, e que vão transformando o partido numa máquina eleitoral cada vez mais dependente do clientelismo, do dinheiro, e portanto, cada vez mais sujeito à corrupção".
Esta semana, ao mesmo tempo em que defendia o governo no caso dos cartões corporativos, Cardozo admitiu, na já célebre entrevista à revista "Veja", em que admite o que muitos petistas insistem em negar, mesmo depois que o Supremo Tribunal Federal aceitou a tese de que o mensalão existiu: houve pagamentos ilegais a políticos aliados.
A dificuldade que o governo petista tem em lidar com questões éticas se evidencia nos últimos dias pela incapacidade de o presidente assumir uma decisão diante do caso do ministro do Trabalho, Carlos Lupi, do PDT, que a Comissão de Ética Pública acusa de atitude aética por acumular as funções de ministro e presidente partidário.
A Comissão de Ética Pública é uma reunião de personalidades públicas suprapartidárias designadas para dar os parâmetros éticos da atuação das autoridades, presidida pelo ex-ministro Marcílio Marques Moreira. O presidente Lula já prometeu "montar uma solução", mas fica nervoso quando cobrado, enquanto o ministro vai mostrando, na prática, por que é incompatível a acumulação de funções.
Talvez essa seja a verdadeira "herança maldita" que o governo Lula legará ao futuro institucional brasileiro, a banalização do erro, a aceitação de que as regras do jogo democrático são precedidas pela leniência com o patrimonialismo. Foi o deputado Ciro Gomes, um potencial candidato à Presidência da República, quem acusou tanto o governo Lula quanto o de FHC de condescendência com essa maneira de fazer política.
Ao mesmo tempo, porém, ele próprio admitiu, num debate com a atriz Letícia Sabatella sobre a transposição do Rio São Francisco, que optou por "meter a mão da massa, às vezes suja de cocô". Mas garantiu que nem a cabeça nem seus compromissos foram afetados.
Essa confissão de Ciro Gomes é mais uma etapa de uma longa discussão que se trava, desde que o PT chegou ao poder central, sobre o papel da ética na política. Um grupo de intelectuais já havia provocado polêmica ao tentar defender o PT na crise do mensalão.
O maestro Wagner Tiso, petista de primeira geração, alegando na ocasião que não estava preocupado "com a ética do PT ou com qualquer tipo de ética", disse que "o PT fez um jogo que tem que fazer para governar o país". Indo mais fundo, o ator Paulo Betti explicitou a sua posição: "Política não existe sem mãos sujas. Não dá para fazer sem botar a mão na merda".
Essa discussão, aliás, nasceu ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando escandalizou os petistas a alegação do filósofo José Arthur Gianotti, amigo do então presidente, de que "o universo da política permite e tolera uma certa imoralidade". A também filósofa, só que petista, Marilena Chauí, em artigo em que defendia o governo das acusações de corrupção, relembrou a tese da "imoralidade constitutiva da política".
Na discussão sobre a ética da política, sobressai a clássica definição do sociólogo alemão Max Weber sobre a "ética da convicção", dos princípios morais aceitos em cada sociedade, e a "ética da responsabilidade", que prevalece na atividade política.
No entanto, Norberto Bobbio, na sua "Teoria geral da política", alerta que nenhuma das teses que existem para justificar a disparidade entre a ética da sociedade e da política "considera que o objetivo da ação política seja o poder pelo poder".
Para o próprio Maquiavel, a ação política "imoral", no sentido de que não corresponde à moral da sociedade, só se justifica se tem por fim "as grandes coisas" ou a "saúde da pátria". Mas a corrupção, que está no centro de toda disputa sobre moral na política, não encontra respaldo em teorias, adverte Bobbio. Mas sempre é possível justificar uma ilegalidade com uma "grande causa".