Os depoimentos que estão sendo tomados na Justiça em diversos estados do país, como parte do processo aberto contra os 40 mensaleiros que formariam “uma quadrilha”, segundo denúncia do procurador-geral da República aceita em princípio pelo Supremo Tribunal Federal, são um festival de cinismo e desrespeito à Justiça do país, como se todos estivessem certos de que o processo não dará em nada. A começar pelo tesoureiro do PT Delúbio Soares, que perdeu o cargo, mas não perdeu as mordomias nem o prestígio partidários, todos os que até agora se apresentaram para responder aos questionamentos da Justiça ou insistiram nas explicações estapafúrdias ou reinventaram suas participações nas tramas do mensalão.
Delúbio, que um dia profetizou que tudo acabaria em piada, já apareceu desde então em várias fotografias rindo muito em comemorações do PT, e ao depor reafirmou que o dinheiro “não contabilizado” foi arrecadado para pagar restos de campanha eleitoral, o famoso recurso ao caixa dois que, segundo o próprio presidente Lula, é um hábito costumeiro na política brasileira.
Mesmo que fosse, a suposição antes de 2002 era de que o PT “não roubava nem deixava roubar”, não se utilizava de instrumentos ilegais em suas campanhas eleitorais, mobilizadas por militantes entusiasmados e puros de espírito. E chegaria ao governo para desmontar essa “máquina corrupta” em que se baseava a política brasileira até então.
Confirmou-se depois, à medida que o mensalão foi sendo desenrolado, que era tudo uma farsa partidária, pois já nas eleições municipais havia uma promiscuidade entre financiamentos de campanha e favorecimento a esta ou àquela empresa de lixo urbano ou de massa de tomate, como demonstram os processos contra o ex-ministro da Fazenda hoje deputado federal Antonio Palocci, ex-prefeito de Ribeirão Preto.
Mas houve depoimentos mais cínicos do que outros, como, por exemplo, o do deputado Paulo Rocha, petista do Pará, prestado na 10aVara da Justiça Federal. A juíza Maria de Fátima Costa teve que advertir o réu diante de sua má-vontade evidente: “O senhor me respeite. Quem manda aqui sou eu. Aqui não é a Câmara. O senhor não vai bagunçar a audiência (...). O senhor fique quieto e responda”.
Ele recebeu R$ 920 mil em 2004, e alega que foi para pagar dívidas contraídas na eleição de 2002 pelo PT do Pará, do qual era presidente.
Outro depoimento cínico foi o do ex-bispo Rodrigues, ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro, que alegou que pegou o dinheiro sem saber que era de origem duvidosa.
Para dar credibilidade a seu depoimento, o ex-bispo da Igreja Universal tentou comover o juiz falando sobre “as dificuldades” da vida de político e revelou um desprezo sincero pelos seus eleitores.
Queixou-se ao juiz de que tinha que “apertar as mãos” de pessoas que não conhecia, e que tinha que ir a enterros e casamentos até nos fins de semana, para atender a compromissos políticos. Havia no Rio, nos anos 60 do século passado, a lenda de que o exgovernador Chagas Freitas, um político populista que tinha a lhe apoiar o então maior jornal popular do estado, “O Dia”, na verdade detestava povo e, toda vez que voltava de uma dessas empreitadas que tanto afligiam o bispo Rodrigues, lavava as mãos com álcool.
Pois, diante do juiz, o bispo Rodrigues lavou metaforicamente suas mãos com o álcool da dissimulação, tentando passar-se por um ingênuo que caiu no mundo político sem querer. Como se antes, como pastor da Igreja Universal, não tivesse que apertar milhares de mãos anônimas.
E como se não tivessem sido essas mãos anônimas que colocaram na urna os votos que o elegeram.
Mas há o caso do ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, que, na época em que comandava o marketing do banco estatal, tinha papel relevante no levantamento de fundos para as campanhas petistas. O primeiro escândalo de mistura entre o dinheiro público e o petismo tinha Pizzolato como protagonista: ele mandou o banco comprar ingressos para um show de música sertaneja em Brasília que arrecadava fundos para a construção da nova sede do PT.
Pois Pizzolato, um dândi quando tinha poder e prestígio em Brasília, mostrou-se mais que isso diante do Juiz Marcelo Granado, da 7ª Vara Criminal Federal em São Paulo. Disse que se prestou a encaminhar dois envelopes ao PT “apenas para ser gentil com Marcos Valério”.
O ingênuo do Pizzolato não sabia que nos envelopes estavam R$ 326 mil, e mandou um contínuo seu cumprir a tarefa, a pedido do lobista, pedido este transmitido não pessoalmente, mas por uma secretária.
O fato de ter comprado em seguida um apartamento por R$ 400 mil foi apenas coincidência, meritíssimo, escusou-se Pizzolato. E até mesmo a acusação de que recebera ordens do então ministro Luiz Gushiken para liberar R$ 23 milhões para uma empresa de Marcos Valério, que ele fizera na CPI dos Correios, desmentiu agora, alegando que se sentira “ameaçado” pelos parlamentares.
Houve também o depoimento do pivô de todo o processo do mensalão, o exdeputado Roberto Jefferson, e de sua vítima preferida, o ex-ministro José Dirceu, identificado no processo do Supremo como o chefe do esquema. Dirceu disse que o mensalão era “uma lenda”. Jefferson recusou a delação premiada oferecida pelo juiz por ser “coisa de bandido”, mas voltou a insinuar que o presidente Lula sabia de tudo.
Quer que o próprio presidente seja convocado como sua testemunha, para comprovar que ele o havia alertado sobre o mensalão. E ironizou José Dirceu, dizendo que ele ficou “bonitinho” depois que fez o implante de cabelo. E que, no escândalo dos cartões corporativos, vão surgir outros gastos estéticos, como botox e plásticas. Não se referia a José Dirceu, certamente.