À espera de uma data
"Não será surpresa se também começarem a prever, junto
com o fim da imprensa, a extinção do alfabeto. Para que um
alfabeto, pensando bem, se não haverá mais leitores? Em
seu lugar poderia ser desenvolvido um sistema de imagens,
sons e sinais, mais ou menos como já acontece, por exemplo,
com esses chimpanzés espertíssimos que aparecem de vez
em quando no Discovery Channel"
Houve um tempo em que os jornalistas não eram, como se diz hoje, fornecedores de conteúdo. Trabalhavam na imprensa, e não nos "meios de comunicação" ou na "mídia". Não saberiam dizer o que seria uma "convergência de meios" ou uma "plataforma multimídia", nem mesmo se topassem com uma delas no meio da rua. Não faziam "produtos", mas apenas jornais, revistas e programas de rádio ou de televisão. Os jornalistas dessa época fumavam nas redações, tomavam bebidas alcoólicas em vez de vinho e contavam piadas que hoje deixariam o Ministério Público em pé de guerra. Quando um jogador passava a bola a outro, no futebol, chamavam a isso de passe, e não de "assistência". Quando usavam a palavra "cego", por exemplo, não ocorreria a ninguém achar que estariam praticando algum insulto nem se recomendava que escrevessem "deficiente visual"; achava-se, simplesmente, que o seu propósito era descrever uma pessoa que não podia enxergar. Quando escreviam "noivos", referiam-se a um homem e uma mulher.
Nada disso quer dizer que se vivia num mundo melhor que o de hoje – ou pior. Era apenas diferente, e de todas as diferenças a mais interessante provavelmente está no fato de que nesse mundo não se falava, como se faz hoje com freqüência cada vez maior, que os jornais e revistas, daqui a mais algum tempo, vão sumir da face da Terra, como sumiram os cigarros Petit Londrinos, o cachorro Rin Tin Tin e a Rede Mineira de Viação. Tais profecias são feitas, em geral, com entusiasmo, quase com alegria – inclusive, e curiosamente, nas próprias empresas que têm jornais e revistas. Acredita-se, na verdade, que qualquer cabeça realmente moderna, ligada no futuro e capaz de entender o conceito de transformação tecnológica, não pode pensar de outro jeito. Nessa visão, a imprensa será fatalmente substituída pela internet, pela telinha do celular ou por alguma coisa ainda não inventada. O certo, segundo nos garantem os melhores especialistas em comunicação, é que "ninguém lê mais nada". Não será surpresa se também começarem a prever, junto com o fim da imprensa, a extinção do alfabeto. Para que um alfabeto, pensando bem, se não haverá mais leitores? Em seu lugar poderia ser desenvolvido um sistema de imagens, sons e sinais – mais ou menos como já acontece, por exemplo, com esses chimpanzés espertíssimos que aparecem de vez em quando no Discovery Channel.
Essa nova realidade, ao que parece, seria recebida com grande satisfação pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se considera hostilizado desde o primeiro dia por uma imprensa destrutiva, maliciosa e parcial. Não é possível demonstrar, pela observação dos fatos disponíveis, que o presente governo receba da imprensa um tratamento muito diferente do que foi dado aos anteriores. O ex-presidente Fernando Collor, por exemplo, dificilmente concordaria com a afirmação de que foi tratado de maneira amável pelos órgãos de comunicação. E José Sarney, então? Fernando Henrique também não se saiu muito melhor. Mas o atual governo está convencido de que sofre, mais do que qualquer outro, uma perseguição injusta e mal-intencionada da imprensa, e não vai mudar de idéia. É compreensível, assim, que um futuro sem leitura possa lhe parecer melhor que o atual.
O problema dessas profecias é que elas não têm uma data – e a data, no caso, é tudo. O que adianta a informação de que uma coisa realmente formidável vai acontecer, se ninguém é capaz de dizer quando? Ou, pior ainda para o governo, quando é certo que até 2010, pelo menos, a imprensa não acaba? Restaria, então, o consolo de que poucos brasileiros, quando se considera a população total do país, lêem jornais e revistas – algo que o governo não perde nenhuma oportunidade de lembrar. Não foi preciso esperar nenhum futuro digital, nem as previsões de algum analista de mídia, para obter esses baixos índices de leitura. Eles são, apenas, o resultado inevitável da ignorância geral vigente no Brasil – fato que os governos nunca deixam de lamentar, mas do qual nunca deixam de tirar proveito. Nem assim, porém, o problema vai embora. Os leitores podem ser poucos, mas ainda somam um número suficiente para permitir que a imprensa continue viva.
A imprensa e os jornalistas brasileiros, de outros tempos ou de hoje, são os que estão aí. Não dá para trocá-los por jornalistas argentinos, por exemplo, como aparentemente seria do agrado do assessor presidencial Marco Aurélio Garcia – para quem uma das vantagens de ir a Buenos Aires é que lá "se pode ler os jornais". A saída, na falta de outras soluções práticas, talvez seja fazer como Luís Soares, personagem de um dos Contos Fluminenses, de Machado de Assis. Ele não lia nada, pois já achava, 150 anos atrás, que a coisa mais inútil deste mundo era a imprensa, logo depois da Câmara dos Deputados e das missas. É uma hipótese, sem dúvida. Tem, ao menos, o mérito de estar aí há muito tempo – antes mesmo de os jornalistas se transformarem em fornecedores de conteúdo.