Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 09, 2008

Livro A Literatura Vista de Longe, de Franco Moretti

Isto não é um artigo de economia

As inovações do crítico italiano que usa gráficos
e outras medições para estudar literatura


Jerônimo Teixeira

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Gráficos
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Trecho do livro

Assim como existe um poema ou romance que lhe causou aquele "estalo" inicial, quase toda pessoa apaixonada por literatura contou com um guia – um crítico que aguçou sua curiosidade e a fez sentir que os livros continham algo de maravilhoso. O número de críticos dispostos a fazer esse trabalho de "casamenteiro" tem diminuído ao longo dos anos. Pior ainda. Cada vez mais enclausurada, a crítica parece perder apelos para os próprios acadêmicos.

No prefácio de A Literatura Vista de Longe (tradução de Anselmo Pessoa Neto; Arquipélago Editorial; 184 páginas; 36 reais), o crítico italiano Franco Moretti, professor de literatura comparada da Universidade Stanford, conta de um colega norueguês que abandonou os temas literários para se dedicar ao estudo de videogames. "E eu acredito que o que ele fez foi correto", observa Moretti, com ironia. Mas ele não está interessado em lamentar a decadência da cultura ocidental. Ao contrário, vê o esvaziamento dos departamentos de literatura como uma oportunidade: "Uma disciplina que está perdendo o seu fascínio pode tranqüilamente arriscar tudo e procurar um novo método". O novo método de Moretti pode ser resumido assim: ler menos, contar mais. No lugar das leituras cerradas de uma só obra ou autor que são costumeiras nas teses de doutorado em letras, ele propõe o estudo de largos panoramas literários, com base em métodos quantitativos que são mais familiares a geógrafos ou economistas do que a professores de literatura. É uma abordagem inovadora e algo herética para os críticos tradicionais, gente muito pouco afeita a fazer contas. Mas os resultados apresentados no livro de Moretti – embora ele mesmo os qualifique de preliminares – são instigantes.

Os gráficos dão uma idéia do trabalho peculiar de Moretti. O primeiro deles diz respeito ao estabelecimento de um mercado para o romance. No que se refere ao Reino Unido, não há tanta novidade. Já existe um consagrado estudo do crítico inglês Ian Watt, A Ascensão do Romance, que identifica as razões sociais – o surgimento de novas classes médias urbanas – do crescimento do gênero na Inglaterra do século XVIII. O que impressiona é a constância com que o fenômeno se repete em outros lugares e datas. Onde quer que tenha se estabelecido, o romance observa curvas de crescimento similares. De acordo com Moretti, a história da literatura obedece a alguns ciclos regulares. A guerra dos sexos seria um exemplo. O gráfico do centro mostra a situação do Reino Unido – mas dados parecidos teriam sido levantados também na França, na Espanha e nos Estados Unidos. No início do século XIX, o romance britânico era dominado pelas mulheres. Foi a geração de Jane Austen, com seus dramas domésticos povoados de pobres meninas casadoiras. Pelos anos 1820, os homens dão a virada, com a geração do escocês Walter Scott, autor de romances históricos como Ivanhoé – livros mais aventurescos e "masculinos". A disputa dos sexos responde, portanto, a uma certa alternância dos subgêneros do romance, que é demonstrada no gráfico da direita: um tipo de romance só começa a crescer quando outro decai. "Os livros sobrevivem se são lidos e desaparecem se não o são", diz Moretti. Ou seja, o público leitor periodicamente se desinteressa do gênero estabelecido e se volta para as novidades. Compilando várias periodizações feitas por historiadores, Moretti descobriu nada menos do que 44 gêneros romanescos entre 1740 e 1900. Conforme a moda, liam-se romances sentimentais, folclóricos, náuticos, religiosos, políticos etc.

No seu passo mais ousado, Moretti importa conceitos da moderna biologia evolutiva para explicar mudanças de forma narrativa – dos clássicos do século XIX à literatura latino-americana contemporânea. Assim como a evolução da vida é ditada em grande parte pela seleção natural desvendada pelo naturalista inglês Charles Darwin, uma espécie de "seleção cultural" operaria sobre o romance, em uma linhagem evolutiva que se diversifica e divide, como os galhos de uma árvore, de Goethe a Mario Vargas Llosa, passando por Flaubert, Proust, Joyce. Derivada de fontes para lá de ecléticas – cartografia, estatística, história, biologia darwinista –, a abordagem de Moretti vai na contracorrente de várias tendências bem estabelecidas nos departamentos de literatura. A objetividade que o crítico herdou das ciências naturais não condescende com o que ele chama de "metafísica franco-alemã" – leia-se, as obscuridades de Lacan, Derrida, Deleuze e outros mestres franceses ainda hoje muito populares nas universidades americanas (e brasileiras). Mas seu método também tromba com as preferências de Harold Bloom, influente crítico de Yale, cujos estudos têm uma fixação nas obras "canônicas" – os clássicos consagrados pelo tempo. O leitor pode conferir os destaques nas figuras acima: obras-primas de Swift, Jane Austen e Mary Shelley são apenas pontos perdidos na curva de um gráfico. O estudo exclusivo do cânone proposto por críticos como Bloom, argumenta Moretti, recorta uma fração insignificante do panorama literário. Do romance britânico do século XIX, por exemplo, sobrariam 200, talvez 300 livros canônicos, quando possivelmente se publicaram mais de 30.000. As duas perspectivas, é verdade, não são excludentes. Crítico de corte mais tradicional, Bloom se centra no detalhe, na leitura "de perto". Com seus gráficos, Moretti toma distância para mostrar novas paisagens. É com esse espírito aberto que a crítica pode reencontrar o seu caminho para o leitor comum.




Certifica.com

LIVROS
13 de fevereiro de 2008



Trecho do livro A Literatura Vista de Longe,
de Franco Moretti

Gráficos, mapas e árvores

O homem que quer a verdade torna-se erudito; o homem que quer liberar sua subjetividade torna-se, talvez, escritor; mas o que fará um homem que quer qualquer coisa entre esses dois pólos?
Robert Musil, O homem sem qualidades.

O título deste breve livro merece algumas palavras de explicação. Antes de mais nada, aqui se fala de literatura: o objeto permanece mais ou menos aquele de sempre, diferentemente da recente virada do new historicism e, depois, dos cultural studies em direção a outros âmbitos de discurso. Mas a literatura é, não obstante, "vista de longe" no sentido de que o método de estudo aqui proposto substitui a leitura de perto do texto (o close reading da tradição de língua inglesa) pela reflexão sobre aqueles objetos artificiais com os quais se intitulam os três capítulos que se seguem: os gráficos, os mapas e as árvores. Objetos diferentes, mas todos resultado de um processo de deliberada redução e abstração. Em suma, de um distanciamento em relação ao texto em sua concretude. Distant reading, chamei uma vez, um pouco por brincadeira e um pouco não, a este modo de trabalhar1 em que a distância não é um obstáculo, mas sim uma forma específica de conhecimento. A distância faz com que se vejam menos os detalhes, mas faz com que se observem melhor as relações, os pattern, as formas.

1 "Conjecturas sobre a literatura mundial". In: Contracorrente: o melhor da New Left Review em 2000. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Do texto ao modelo, então, ou, melhor ainda, aos modelos, no plural, como no título, talvez um pouco duro, severo, das três conferências proferidas em Berkeley, na primavera de 2002, e que formam a base destas páginas: Modelli astratti per la storia letteraria [Modelos abstratos para a história literária]. E os modelos, além do mais, foram retirados de três disciplinas com as quais a história literária teve, no curso de sua existência, pouco ou nada a ver: os gráficos da história quantitativa, os mapas da geografia e as árvores da teoria da evolução. As razões remotas desta escolha remetem à minha formação marxista que foi muito influenciada por Galvano della Volpe e comportava (senão na prática mesmo, pelo menos em teoria) um grande respeito pelo método das ciências naturais. Enquanto a teoria literária dos últimos 20 anos – a Teoria, com T maiúsculo, das universidades americanas – reverberava a metafísica franco-alemã, para mim continuava a parecer que aquelas com as quais tínhamos verdadeiramente que aprender alguma coisa (melhor: muitas coisas) eram as ciências naturais e sociais. E este livro é também, na sua brevidade, uma tentativa de iniciar um diálogo em uma direção diversa.

Às razões que vieram de longe, se associa uma outra, muito próxima: o fato, evidente e inevitável, de que o interesse pelo estudo da literatura está diminuindo a olhos vistos. Quando entrei na universidade, e não foi um século atrás, no curso de Letras existiam quatro professores de Latim para um de Inglês. No ciclo de uma geração, tudo mudou. E a geração que veio depois, repare bem, quer continuar mudando. Estudar cinema, televisão, publicidade e quadrinhos está na ordem do dia. O crítico norueguês que escreveu o excelente ensaio sobre a narrativa contemporânea para Il romanzo deixou há alguns meses sua cadeira de Literatura e foi trabalhar em um centro de estudos sobre videogames. E eu acredito que o que ele fez foi correto.

E agora? Agora, como em Patmos, onde surge o perigo surge também a salvação. Uma disciplina que está perdendo o seu fascínio pode tranqüilamente arriscar tudo e procurar um novo modo, um novo método para tornar significativo o seu próprio trabalho. E se aqui, como já disse, os métodos serão abstratos, as suas conseqüências são, porém, todas concretas. Gráficos, mapas e árvores nos colocam, literalmente, diante dos olhos (a literatura vista de longe...) o quanto é imenso o campo literário e como sabemos tão pouco dele. É uma dupla lição, simultaneamente de humildade e euforia: humildade em relação àquilo que fizemos até aqui (bem pouco), e euforia em relação àquilo que ainda temos que fazer (muitíssimo). E, então, comecemos.

Antes dos Annales, Krzysztof Pomian escreveu: "o comportamento dos historiadores parecia-se com aquele dos colecionadores: uns e outros recolhiam somente as coisas raras e curiosas, deixando de lado tudo o que era banal, cotidiano e normal [...] a história era uma ciência idiográfica, isto é, uma ciência que tinha como objeto aquilo que não se repete"2 . "A história era..." Pomian aqui fala no passado como, talvez, seja o correto para a história social, mas certamente não para a história literária, em que o colecionador de coisas (ou obras) raras e curiosas, que não se repetem, excepcionais – e que o close reading torna ainda mais excepcionais quando sublinha o caráter único daquela palavra e daquela frase ali – é ainda, de longe, a figura dominante. Mas o que aconteceria se os historiadores da literatura decidissem também "mudar a direção do olhar" (ainda Pomian) "do extraordinário para o cotidiano, dos acontecimentos excepcionais para a grande massa dos fatos"? Que literatura terminaríamos por encontrar na "grande massa dos fatos"?

2 K. Pomian. "L´histoire des structures". In: J. Le Goff (org.), La nouvelle histoire. Paris, 1978, p. 115-16.

Todas estas eram perguntas que comecei a fazer-me alguns anos atrás, quando o estudo dos repertórios bibliográficos de vários países europeus fez-me entender em que minúscula fração do campo literário se desenvolve, normalmente, a atividade da crítica. Tomemos o século 19 inglês: um cânone de 200 ou 300 romances ecoa qualquer coisa, menos que seja exíguo (e seria, com efeito, muito mais amplo do que o cânone corrente), mas cobriria, porém, somente cerca de um por cento dos romances efetivamente publicados: 20 mil, 30 mil ou mais, ninguém sabe precisamente. E o close reading aqui não ajuda muito. Se você fosse ler um romance por dia, por todos os dias do ano, seria preciso pelo menos um século para ler todos... E depois não é nem mesmo uma questão de tempo, mas de método: um campo assim tão vasto não é possível ser entendido apenas colocando lado a lado o que sabemos deste ou daquele outro caso isolado. Porque não é a soma de tantos casos isolados: é um sistema coletivo, um todo, que deve ser visto e estudado como tal. Ou, para citar a conferência sobre a história que Fernand Braudel proferiu em 1941, em Lubecca, para os seus companheiros de prisão:

Um número incrível de dados, sempre em movimento, domina e decide o caso de cada existência em particular [...]. Incerteza, portanto, no campo da história individual, mas no outro, no campo da história coletiva, simplicidade e coerência quase total. A história é, sim, "uma pobre pequena ciência conjetural" quando tem por objeto indivíduos isolados do grupo, quando trata de acontecimentos, mas é muito menos conjetural e bem mais racional, seja nos procedimentos, seja nos resultados, quando recolhe para examinar os grupos e o repetir-se dos acontecimentos3.

Uma história literária mais racional. Esta é a idéia.

3 F. Braudel. "L´histoire, mesure du monde". In: Les écrits de Fernand Braudel, vol II. Paris, 1997.


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