Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 10, 2008

FERREIRA GULLAR

Estamos na cara


No que o rosto mostra, especialmente o olhar, apreendemos o que chamaria de "alma"

FIZ UMA descoberta óbvia: é no rosto das pessoas que está de fato o que elas são. Claro que elas são também tudo o mais: suas pernas, seus braços, suas nádegas, suas mãos. E as mãos dizem muito do que a pessoa é; não me refiro às linhas das mãos que as ciganas decifram e, sim, à forma delas: o tamanho, a musculatura, os dedos, se são finos e longos, se são grossos e curtos. Se as mãos efetivamente expressam algo da pessoa que está oculto, não sei, mas, ao vê-las, passa-nos alguma coisa do que a ela é ou pode ser.
Costuma-se dizer que dedos finos e longos indicam espiritualidade, o que, se pode não ser verdade, não exclui a hipótese de que tais mãos não foram feitas para trabalho pesado. De qualquer modo, expressem elas o que expressarem, não falam como fala o rosto, não têm o mesmo grau de significação que captamos nas feições de uma pessoa. De fato, o rosto é a pessoa. Pode parecer óbvio, mas a verdade é que, no que o rosto mostra, especialmente o olhar, apreendemos o que chamaria de "alma" -o que a pessoa é, que está no corpo, mas só no rosto se mostra.
Se olharmos alguém por trás, quem é? Vemos as costas, os ombros, as orelhas, a nuca coberta pelos cabelos, mas é como se fosse apenas alguém, um desconhecido. Ou melhor, ainda que saibamos quem é, o que vemos é só um corpo, de identificação insatisfatória, a identidade que faz dele um conhecido. É preciso que volte o rosto para nós a fim de que a real identificação se dê, por que é só quando lhe vemos o rosto, que o temos diante de nós, que o reconhecemos e nos sentimos por ele reconhecido. Sim, porque a pessoa não é só o que vemos, mesmo se lhe vemos o rosto; é também alguém que nos vê -o que não acontece se ela está de costas.
É assim também se, no jogo amoroso, a possuis por trás, se estás sobre ela, deitado em suas costas, acariciando-a: sabes que é ela, mas, no entanto, é como se a desconhecesses ou a descobrisses estranha, apenas corpo: o corpo que acaricias e beijas, como se acariciasses e beijasses uma desconhecida. Talvez por isso a relação por trás tenha um sentido outro e produza um prazer inusitado, tanto para um quanto para o outro, como se possuísses outra mulher, que não aquela que está ali contigo, como se a traísses com ela mesma que, por sua vez, se sente possuída por outro, que não tu, e te traísses contigo... Papo brabo, este, não?
Enfim, o rosto é que é a pessoa. Não por acaso é a fotografia do rosto que se cola na carteira de identidade e no passaporte. E teria sentido por ali a fotografia do joelho? Bem, da bunda ainda seria pior! Alguém achará que não, não sei, depende... O poeta Henri Michaux, que nunca se deixou fotografar, só permitiu que lhe fotografassem a mão, precisamente para não ser identificado. Sim, porque o que as mãos têm de específico é a impressão digital, coisa epidérmica.
A verdade é que nenhuma dessas partes do corpo possui tanta especificidade, capaz de identificar indiscutivelmente a pessoa. O rosto é único e inconfundível. À exceção de gêmeos como Chico e Paulo Caruso, as pessoas, mesmo parentes próximos, como irmãos, têm rosto que os distingue um do outro. E o que os distingue não são só traços fisionômicos -a forma da boca, o tamanho e a cor dos olhos, o nariz-, mas, sobretudo, a expressão que surge desse conjunto de elementos e que é mais que a combinação deles: o rosto expressa, como já disse, a personalidade, enfim, o que achamos que a pessoa é de fato. Digo "achamos" porque me mantenho ao nível das aparências, uma vez o que cada um é, na verdade, nem Freud explica.
Sei que tudo o que está dito aqui todo mundo sabe. Pode não ter ainda se detido a refletir, mas, tacitamente, o sabe. E foi essa a razão que me levou a escrever sobre este assunto, uma vez que, de tão sabido, torna-se ignorado. Lembra-me aquela história, contada por Fernando Sabino, de quando ele e Hélio Pellegrino, jovens, estudavam anatomia e, para se fixarem no tema, repetiam: "os dentes", mas logo derivavam para temas mais interessantes e, para retomá-lo, voltavam a repetir: "os dentes". Pois é mais ou menos isto que tenho feito, desde que descobri que é no rosto que estamos nós, que somos ele. Se o assunto me escapa, repito: "o rosto" -certo de que alguma coisa de especial há de se revelar sob a obviedade de minha descoberta. E você concordará se pensar junto comigo: não é estranho que uma pessoa, tendo tanto corpo (pernas, braços, barriga), só a identifiquemos por uma pequena parte sua, de um palmo apenas, que é o rosto? O rosto, onde se situam dois olhos que, do fundo insondável da vida, nos espiam.

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