Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 09, 2008

EUA A acirrada disputa entre os democratas

As aparências enganam

No Brasil, Hillary seria tucana e Obama,
petista? Parece verossímil, mas não é


André Petry, de Nova York

Fotos Andy Clark/Reuters e Sergio Dutti, Frank Polich/Reuters e Wilton Junior/AE



VEJA TAMBÉM
Nesta reportagem
Quadro: O território de cada um
Exclusivo on-line
Perguntas e respostas: A campanha eleitoral americana

Hillary Clinton, 60 anos, tem excelente formação acadêmica, tem acurácia intelectual, é versada nos códigos de Washington, fascina pela precisão mas jamais pela emoção e entende a política como a arte do possível. Parece, por assim dizer, um Fernando Henrique Cardoso de saias. Seu maior rival, Barack Obama, 46 anos, um forasteiro nos círculos do poder, é um orador notável, levanta a massa quando fala e quando cala, já reúne um cortejo de apoio entre atores e músicos e apresenta-se como o candidato da esperança e da mudança. É uma versão negra – mulata, nos padrões brasileiros – de Luiz Inácio Lula da Silva. Resumida assim, a disputa pela candidatura do Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos, uma corrida que trouxe uma eletricidade política que fazia décadas não se via no país, fica fácil de entender. Mas as comparações são uma simplificação enganadora.

Ao contrário das aparências, Hillary cultiva inimigos com zelo de ourives e tem um pé no sectarismo político, defeitos que vem procurando corrigir desde que chegou ao Senado em 2000. Dona de posições firmes, ela não sobe no muro, mas desce a ripa. Sua atual campanha, num aperitivo apimentado do que é capaz de fazer para chegar lá, bordejou o racismo quando seu marido, o ex-presidente Bill Clinton, desprezou o desempenho do rival na Carolina do Sul. Disse que Obama só ganhava votos ali porque era negro. Logo Bill, tido como o mais negro dos políticos brancos. Obama também não segue o figurino aparente. Não trocou os estudos pela política, freqüentou Columbia e Harvard, escreveu dois livros e sabe onde fica Djibuti. É bom ouvinte, tem alma conciliadora e generosidade política. Até arrastou asa para o legado de otimismo do ex-presidente Ronald Reagan, eterno ícone da direita republicana.

Vale milhões de dólares a resposta à seguinte pergunta: qual deles será o candidato democrata à Casa Branca? Até pouco tempo atrás, com um negro e uma mulher postulando a indicação, o Partido Democrata era uma legenda orgulhosa de sua diversidade e certa de selar o cavalo vencedor – fosse quem fosse o candidato. Agora, sobretudo com o resultado da Superterça, em que republicanos e democratas de 24 estados escolheram seus candidatos presidenciais, surgiu uma nuvem de apreensão: Hillary e Obama estão numa disputa acirrada demais – e já apareceu pesquisa dizendo que John McCain, veterano de guerra que lidera a corrida pelos republicanos, pode vir a ser um páreo duro. Hillary tem mais delegados à convenção que Obama, 1 045 contra 960, e levou Califórnia e Nova York, vitórias que, na geografia política americana, são como vencer em São Paulo e no Rio ou em Minas. Mas Obama está vivo. Vivíssimo.

Em janeiro, em um dado revelador de seu bom momento, Obama recolheu quase o dobro de Hillary em doações financeiras. Na semana passada, Obama faturava mais 3 milhões de dólares num único dia, enquanto Hillary tirava 5 milhões do próprio bolso para seu caixa – ninguém sabe o tamanho exato do patrimônio dos Clinton, com estimativas que vão de 10 milhões a 50 milhões de dólares. Obama, em outro sinal de ascensão, agora recusa convites para debates televisivos (já houve dezoito). Mas talvez o mais importante seja que sua campanha transpira energia e vibração. Obama está empolgando a juventude americana, sempre tão alheia à política, e o entusiasmo que desperta empresta um sentido todo especial ao grito de guerra que milhares de obamistas entoam em cada discurso do candidato: "Yes, we can! Yes, we can!" (Sim, nós podemos!). Cada vez mais, parece que podem, sim.

Jim Young/Reuters
Veterano da Guerra do Vietnã, John McCain, líder isolado na disputa republicana: a Guerra do Iraque, quem diria, faz bem à candidatura dele

Pelos números que já vieram a público, Hillary é a candidata preferida das mulheres hispânicas e dos eleitores mais velhos. Obama, dos jovens e dos homens negros (veja quadro). Isso não diz tudo e, diante da fluidez do eleitor, não garante o futuro de ninguém. Fazer uma campanha vibrante, como a de Obama, talvez seja mais relevante, considerando que a disputa confronta dois candidatos com diferenças microscópicas no campo das idéias. Eles têm propostas semelhantes sobre impostos, ambos votaram pela construção do muro na fronteira com o México para barrar imigrantes ilegais, defendem o aborto legal, a união civil entre pessoas do mesmo sexo e pregam – neste caso, cada um à sua maneira – a universalização do serviço de saúde no país. O eleitorado sabe da semelhança. Tanto que os democratas à direita, ao centro e à esquerda se dividem meio a meio entre Hillary e Obama.

A distinção mais nítida entre os dois deu-se na origem da Guerra do Iraque, e não pára de repercutir. Hillary votou a favor. Hoje, candidamente, diz que, se soubesse da baderna que a guerra produziria, teria votado contra. Obama foi contra desde o início. Não deixa o eleitor se esquecer disso um minuto e gosta de afirmar que não se opõe a todas as guerras, só às "guerras burras". É nessa trincheira que entra o republicano John McCain. Ele sempre foi a favor da Guerra do Iraque e já disse que os EUA devem ficar lá por um século, se for preciso. Isso soa como música aos ouvidos dos republicanos mais duros, que, novamente ao contrário do que pode parecer, não estão nada contentes com a ascensão de McCain. Acham-no liberal demais, quase um traidor do conservadorismo.

No jogo das falsas aparências, John McCain, 71 anos, cabelos brancos, sulista do Arizona, parece um tipo como o catarinense Jorge Bornhausen, velho cacique do velho PFL. Mas não é. Já andou querendo afrouxar suas posições sobre a imigração ilegal, repudiou o veto à união civil entre pessoas do mesmo sexo, apoiou restrições às doações financeiras eleitorais e até votou contra um pacote de corte de impostos de George W. Bush, heresia suprema para republicanos da gema. Com o Iraque no centro do palco, McCain ganha um certo espaço na direita que o despreza. Apesar de tantas aparências enganosas nas prévias eleitorais, há duas imagens inequívocas: a de uma mulher e a de um negro disputando uma candidatura presidencial, e, se um deles ao final levar a Casa Branca, será um ineditismo histórico. Se a democracia americana precisava dar algum sinal de diversidade e vigor, a fotografia está completa.




Fotos Janson Reed/Reuters e Justin Sullivan/Getty Images/AFP
Certifica.com

Arquivo do blog