Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 17, 2008

Daniel Piza

Massa acrítica


Um amigo notou outro dia, depois de conversa com uma professora universitária de Ciência Política que de vez em quando aparece como especialista na imprensa, que com o passar dos anos todo governo vai ganhando adesão da "academia", como se esta se dedicasse a fundamentar aquilo que os políticos fazem de maneira muito mais improvisada e mal-intencionada. Há quem atribua isso ao fato de que nossa intelligentsia é muito "estatizada", em grande parte assalariada pelo poder público - assim como as artes dependem demais de Petrobras, Caixa e Banco do Brasil e há órgãos de imprensa que se dizem alternativos e vivem da publicidade oficial...

Não sei. Mas intriga ver como se está reagindo à sucessão acachapante de escândalos a respeito do uso do patrimônio coletivo. Como agora nem a banda petista nem a tucana podem pôr o dedo em riste e se autonomear Os Paladinos da Ética, não restando mais ninguém no palco, então os esforços se dirigem num sentido curioso: o de justificar os erros individuais ou partidários como "do sistema" e/ou aliviá-los com o contraponto do bom momento econômico. O caso atual dos cartões corporativos é só mais um episódio.

Está na moda dizer, por exemplo, que "nos outros países é assim também" a respeito de diversas coisas: corrupção, incompetência, instabilidade política, carga tributária... Viu o caso Kerviel na França? A Califórnia também teve apagão energético! E a Itália, sempre trocando primeiros-ministros, agora de volta ao bolso de Silvio Berlusconi? Na Dinamarca o cidadão paga mais de 50% de sua renda em impostos! Então tome notícia ruim na cabeça... E chega dessa cobrança por reformas; afinal, o "Brasil está melhorando".

É por isso que acho insuficiente a explicação de que os intelectuais são servidores, até porque em instituições particulares se vê o mesmo espírito coronelista. Trata-se de algo mais profundo, mais arcano. Historicamente se apegou à índole do brasileiro essa aversão a mudanças estruturais, não importa em qual graduação ou prazo. No máximo, topa-se um ajuste aqui, uma compensação ali, embora sempre tudo anunciado como grandioso. Não importa que as melhoras sejam muito lentas e limitadas, e que justamente nas fases boas é que se deveria tomar a coragem de aprofundá-las; o importante é manter as aparências, mesmo que metade da população continue alheia à civilização.

Esse conservadorismo espalhado pelas classes, possível fruto das raízes oligárquicas brasileiras - da "suavidade" que Joaquim Nabuco viu se radicar com a escravatura, ou da "cordialidade" que Sérgio Buarque associou à falta de liberalismo na formação colonial -, se repete nos intelectuais em geral. Embora se considerem uma casta à parte, eles não têm a independência mental que deveriam ter. Na base do "não estamos tão ruins assim", por mais que esta frase tenha alguma conexão com fatos, perdemos a tal massa crítica, a mentalidade suficiente para gerar atitudes em vez de platitudes.

RODAPÉ (1)

No final do ano passado se comemoraram os 150 anos de nascimento de Joseph Conrad no mundo todo (no Brasil, menos), confirmando quanto tem sido cada vez mais lido por novas gerações. De Michael Ondaatje a Milton Hatoum, de V.S. Naipaul a J.M. Coetzee, muitos escritores contemporâneos trazem sua influência. Ele não tinha o mesmo status na primeira metade do século 20, mesmo que T.S. Eliot tenha posto uma frase de O Coração das Trevas na epígrafe de seu poema The Waste Land. Hoje é lido como um dos grandes escritores modernos, perto de Joyce, Kafka, Proust ou Mann.

Estou terminando de ler agora a biografia The Several Lives of Joseph Conrad, de John Stape (editora William Heinemann), lançada para marcar a data. Stape conhece bem o assunto e levantou fotos inéditas; além disso, tem o bom senso, raro, de não vender como fatos o que não passa de especulações. Mesmo assim, achei que as viagens de juventude de Conrad quando marinheiro, antes de iniciar sua carreira como escritor aos 38 anos, com A Loucura de Almayer, mereciam descrição mais detalhada. E Stape diz, comparando com Stendhal e Flaubert, que o estilo de Conrad "pode cair em maneirismo" ou "relaxar na gramática", o que acho besteira. Tem gente que é ortodoxa demais.

RODAPÉ (2)

Ortodoxo era também G.K. Chesterton, de cujo ensaio Ortodoxia acaba de sair no Brasil uma edição comemorativa de centenário (editora Mundo Cristão). O ensaísmo de Chesterton me atrai por sua arte argumentativa; Borges, por sinal, se inspirou muito nele para elaborar os paradoxos de suas histórias. A defesa de uma religiosidade não asceta - que faz também nos ensaios de Doze Tipos, publicados pela Topbooks em 1994 - é outro atrativo. Como Vieira, ele não entendia o porquê de renunciar radicalmente aos prazeres do mundo.

Em Ortodoxia, ele critica o materialismo porque "em todas as coisas, em toda parte, existe o elemento do misterioso e do incalculável", na mesma linha de pensamento de William James, Bergson ou do nosso Guimarães Rosa. Não acredito num pensamento que possa abdicar da lógica ou determinar uma "verdade ilógica", como ele diz. Tampouco tenho certeza de que o cristianismo foi a única religião "que acrescentou a coragem às virtudes do Criador". Mas defendo até a morte o talento de Chesterton ao defender sua ortodoxia.

DE LA MUSIQUE (1)

Herbert von Karajan e Leonard Bernstein, como lembrou João Luiz Sampaio em artigo recente, marcaram a música do século 20 com seus estilos intensamente pessoais. Agora se comemoram 100 anos do primeiro e 90 do segundo e a gravadora Deutsche Grammophon tem relançado coisas preciosas. Para os iniciantes sem muito orçamento, saíram Karajan Gold, com dois CDs, que tem movimentos de Vivaldi a Smetana, com destaque para o "allegro" da Quinta de Beethoven (ou então você pode comprar todo o ciclo das sinfonias numa caixa só); e Leonard Bernstein Mozart, com seis CDs, incluindo a sinfonia Júpiter e o Réquiem. Eis aí uma boa diferença: embora ambos tivessem personalidade forte, o temperamento de Karajan era mais beethoveniano e o de Bernstein, mais mozartiano. Tenho um amigo que acha que a humanidade toda se divide assim, entre beethovenianos (mais tensos e céticos) e mozartianos (mais leves e emotivos). É uma divisão tão boa, ou ruim, quanto qualquer outra.

DE LA MUSIQUE (2)

Você pode não gostar ou gostar só de algumas faixas, mas do CD Jukebox, de Cat Power, não pode dizer que não seja criativo. Começa já na primeira, uma versão muito peculiar de New York, e vai até Angelitos Negros, em espanhol mesmo. Para mim, ela se dá melhor em músicas com pegada mais folk ou blues, como em Silver Stallion, de Johnny Cash, I Believe in You, de Bob Dylan, e sobretudo Breathless, de Nick Cave. Como Joanna Newson, Cat Power faz algo original sem tirar a idéia de cada canção.

Não é o que ocorre, aliás, em Onde Brilhem os Olhos Meus, CD em que Fernanda Takai, do Pato Fu, regrava músicas interpretadas por Nara Leão. A suavidade de Nara fica desossada, talvez porque também os arranjos são simples demais.

UMA LÁGRIMA

Por falar em suavidade, a de Henri Salvador, morto aos 90 anos na quarta passada, era famosa. Era um homem a meio caminho entre o bolero e o jazz. A versão dele de que inspirou a bossa nova com músicas como Dans Mon Île não é confiável; afinal, o próprio Salvador tinha trabalhado no Rio nos anos 40, como lembrou Ruy Castro, e pegado uma cadência de samba canção. Mas deixou algumas músicas bem agradáveis e era um guitarrista de primeira.

POR QUE NÃO ME UFANO

Achei curioso como se acalentou uma idéia de que a estréia de Tropa de Elite, o filme de José Padilha, no Festival de Berlim, na semana passada, daria uma noção mais clara de suas qualidades, porque distanciado do debate nacional sobre segurança. Pois a crítica européia e americana que estava lá, e em geral reagiu sem entusiasmo, observou coisas muito parecidas. Mais que isso: ninguém o elogiou por supostamente ser o primeiro a chamar atenção para o consumo de drogas na classe média. Um texto interessante foi o do Le Monde, que reclamou das cenas de recrutamento e da aceleração violenta que afasta reflexões.

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