Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Cuidado com o "humanismo" neofascista

por Reinaldo Azevedo
Nelson Ascher, sempre às segundas na Folha, é um dos melhores articulistas da imprensa brasileira e, sem dúvida, o melhor texto do jornal. O outro que merece aplauso é o português João Pereira Coutinho, que escreve às terças, ambos na contracapa da Ilustrada. Por que lembrar que é português? Porque, no Brasil, a formação européia — de certo modo, também é o caso de Ascher — pode fazer alguma diferença: eles não precisam pagar pedágio ao esquerdismo bocó do lulo-petismo — afinal, coisa de “latino-americanos”. Os dois não integram o vasto batalhão de articulistas incapazes de criticar o Apedeuta sem bater também em FHC. Nao padecem de "isentismo", a doença infantil da independência.

Se um destino trágico mantiver os petistas no poder por 20 anos, haverá ainda os funcionários mentais do petismo para dividir “culpas” entre o PT e... FHC!!! Nada mais chato, atrasado, burro e convencional do que isso. E também não integram a pequena burguesia desiludida com o capitalismo, escrevendo sob o cabresto do marxismo uspiano dos anos 60. Não é uma questão de sangue, é claro, mas de formação intelectual. Ascher e Coutinho deveriam estar, todas as segundas e terças, respectivamente, na primeira página da Folha. O jornal não deve jamais abrir mão da tarefa de civilizar os leitores. Adiante.

Nessa confusão de Carnaval, acabei não comentando o excelente texto que Ascher publicou ontem. O homem escreve para adultos, não para adolescentes ideológicos contaminados pela diluição da velha agenda de esquerda, hoje dividida entre os vários “ismos” politicamente corretos — entre eles, é evidente, o ecologismo bocó. Assim começa o artigo:

QUANDO VIERAM atrás das lâmpadas incandescentes, não protestei porque já me habituara a ler à luz de outras; quando baniram os bifes, não disse nada porque podia comer pizzas; quando eliminaram os transgênicos, tampouco reclamei, pois meu salário bastava para comprar alimentos orgânicos; quando proscreveram os vôos internacionais, dei de ombros, pois já conhecia Paris, Londres, Veneza; quando tornaram proibitivo o uso de automóveis, obrigando todos a se aglomerarem em ônibus e metrôs, calei-me porque trabalhava em casa; quando plastificaram as genitálias alheias para limitar a produção de bebês, ri da história porque não me dizia respeito; quando criminalizaram a sátira, os comentários politicamente incorretos, a obesidade, o fumo etc., aí, obviamente, já era tarde demais para abrir o bico.

Ascher faz uma paródia de um texto famoso — famoso também porque é um daqueles casos clássicos de atribuição indevida de autoria. Leiam:

“Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram. Já não havia mais ninguém para reclamar.”

O autor das palavras acima não é Bertolt Brecht, não é Maiakovski, não é o brasileiro Eduardo Alves da Costa (que escreveu algo parecido), mas o teólogo protestante alemão Martin Niemöller (1892-1984). Ele teve uma trajetória curiosa. Chegou a flertar com o nazismo nos primeiros tempos. Quando, vamos dizer, já havia ficado claro quem era Hitler e o que queria, ainda ambicionou incutir-lhe um tanto de sensatez. Até que percebeu do que se tratava e migrou para a oposição aberta. Foi processado em 1938 e enviado para o campo de concentração de Dachau, onde permanece até o fim da guerra. Correto estava o Niemöller do texto acima, não o que sonhou com as mãos estendidas para o ditador facinoroso.

A paródia de Ascher, claro, é muito bem-vinda. Ao fazê-la, para quem sabe ler, evidencia que vivemos dias bem próximos de um novo totalitarismo: ele está fragmentado em várias frentes, assume diversas roupagens e advoga várias faces particulares do humanismo. De fato, o Ocidente passou a ser tolerante em excesso com aqueles que querem solapar o seu valor essencial, sem o qual todo o resto está sob risco: a liberdade.

Seguem os demais parágrafos de seu excelente texto:

Poucas décadas atrás, todas as proibições mencionadas teriam parecido ridículas, quando não absurdas. Dependendo de onde a vítima viva, hoje a maioria delas se tornou real demais. E muitas estão sendo impostas aos cidadãos não por meio de mecanismos democráticos, como a discussão e o voto, mas através de lobbies endinheirados que pressionam governos para que estes imponham à sociedade as manias desta ou daquela minoria obsessiva.

O lobby mais poderoso e articulado é, sem dúvida, o dos verdes ou ecologistas. Esse pessoal não apenas meteu na cabeça que, devido a algumas variações de frações de graus nos últimos cem anos, o planeta está prestes a se derreter, como se convenceram também de que nós, ou seja, os seres humanos, é que somos a causa do suposto desastre. Gente como Al Gore, os militantes do Greenpeace e os burocratas transnacionais da ONU selecionam a dedo, entre inúmeras hipóteses contraditórias, as poucas que lhes confirmam os preconceitos, obtêm apoio de alguns cientistas que acreditam nelas, conseguem o silêncio de muitos outros e, valendo-se de modelos computacionais às vezes duvidosos, muitas vezes discutíveis e discutidos, transformam em verdade absoluta o que mal passa, no momento, de uma especulação entre tantas, declarando, precipitada e acientificamente, que se trata de consenso indiscutível. Para completar, demonizam ou isolam quem quer que levante a menor objeção.

Mas, como não faltam mais aqueles que estão devidamente habituados a/e vacinados contra seu terrorismo conceitual (e, não raro, seu terrorismo propriamente dito), o fato é que, se submetidas aos processos decisórios normais de uma democracia, as medidas que eles reivindicam para combater tais males imaginários jamais seriam referendadas pelo grosso do eleitorado. Aí entram milionários como George Soros, companhias preocupadas com o efeito da propaganda negativa, firmas interessadas em vender produtos ecologicamente corretos, economias estagnadas que vêem nessa medida uma maneira de prejudicar as que andam a pleno vapor, países, ou antes, governos e elites do Terceiro Mundo aos quais se promete certa vantagem financeira em troca de apoio e assim por diante.

Um exemplo ajuda: pouco antes de deixar a presidência dos EUA para se tornar uma presença requisitada em Davos e lobbista internacional, Bill Clinton assinou o Protocolo de Kyoto. Por que é que só o fez então? Porque sabia que o documento não tinha a menor chance de passar pelo Senado. Embora seu gesto fosse, como tal, inútil, este aumentava sua popularidade entre o jet-set internacional em detrimento, é claro, da imagem de seu país. E isso apesar de sabermos que Kyoto era praticamente inútil, que as nações mais vocalmente empenhadas em seu sucesso têm sido as que mais longe ficaram das metas propostas.

A preocupação exacerbada com o clima e o meio ambiente, coisas cujo funcionamento se conhece pouco e mal, já resultaria em problemas imediatos, pois, para a parcela miserável da humanidade, dificulta cada vez mais a superação de seu estado. O que a faz ainda pior é o fato de que seja usada para encobrir ou eclipsar as questões verdadeiramente urgentes, os perigos autênticos que nos rondam: fanatismo religioso e conflitos interétnicos, terrorismo e banditismo internacionais, contrabando de armas e narcotráfico, migrações descontroladas, ditaduras genocidas em vias de adquirir armamentos nucleares. Nada disso, porém, desviará a atenção de milhares ou milhões de militantes que, como os adeptos de qualquer seita, são movidos por dois desejos prazerosos, a saber, o de policiar a vida alheia e o de punir o sucesso de sociedades inteiras que não comungam de sua fé apocalíptica.

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