Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, fevereiro 05, 2008

JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE S. PAULO

A arte de bem degolar


Gênios? Existem. Mas não na quantidade que o analfabetismo cultural apregoa

AS PESSOAS usam e abusam da palavra gênio. Alguém escreve, pinta ou filma com relativa competência e as massas críticas irrompem em delírio, proclamando genialidade com assustadora ligeireza. Como se chegou a este triste estádio, em que os gênios se multiplicam com a rapidez própria dos coelhos?
Ideologicamente, claro. A idéia de "gênio", uma herança dos românticos à humanidade, implica uma desigualdade que o pensamento igualitarista não tolera. O gênio é naturalmente superior: ele não depende das condições materiais do seu tempo para criar; ele situa-se muito acima do seu tempo, falando aos contemporâneos com um sentido de eternidade que suplanta os contemporâneos. Basta ouvir Mozart ou ler Flaubert para perceber que nenhuma política "social" será capaz de resolver o intransponível abismo entre "nós" e "eles".
E se o abismo é intransponível, a melhor forma de acabar com ele passa pela democratização da palavra "gênio". Todos somos gênios, o que implica que ninguém é. O ato tem efeitos perversos: ao declarar qualquer um como gênio, acabamos por ignorar os verdadeiros. Que são, como sempre foram, raros.
Quem, hoje, merece verdadeiramente o título? Gostaria de arriscar um nome: Sondheim. É provável que os leitores desconheçam o personagem: na orgia do lixo cultural, Sondheim não tem a fama de uma Britney Spears.
Mas olhando para a história musical dos últimos cinqüenta anos, Sondheim não tem par e não tem rival. A frase talvez soe a heresia, sobretudo quando o "songbook" americano apresenta Gershwin, Porter ou Berlin. Sondheim soube receber a herança de todos eles, sobretudo como discípulo de Hammerstein. Mas Sondheim, respeitando a herança, melhorou-a e, como qualquer gênio, subverteu-a. E não apenas como compositor. As letras de Sondheim criaram um mundo como a Broadway nunca viu: um mundo adulto, capaz de lidar com os grandes temas da condição humana sem o sentimentalismo doce dos mestres anteriores. Quando assistimos a "Company" (um musical sobre a complexidade das relações amorosas) ou a "Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street" (um ensaio sobre a natureza da vingança), estamos em território novo e esmagador.
E se falei em "Sweeney Todd" foi de propósito: Tim Burton, depois da permissão de Sondheim, resolveu passar para filme o musical de 1979. Chamou Johnny Depp e Helena Bonham Carter para os papéis originais de Len Cariou e Angela Lansbury. E, com o talento visual conhecido, recriou aos nossos olhos a Londres vitoriana e pestífera onde se desenrola a ação.
E então encontramos Benjamin Barker, barbeiro em Fleet Street e vítima da cobiça de um juiz, que o condena ao degredo para lhe roubar a mulher e a filha. Quinze anos depois, Barker regressa a Londres para se vingar do juiz. Mas não apenas do juiz. Ao saber que a mulher optara pelo veneno e a filha é prisioneira do seu algoz, a vingança de Sweeney Todd, nome de guerra, será executada sobre toda a humanidade. E executada a golpes de navalha. Como cúmplice, Todd terá a ajuda de Mrs. Lovett, antiga senhoria que nutre por Barker, ou por Todd, uma paixão platônica.
Eles são, à sua maneira, o par perfeito: enquanto Todd degola, Mrs. Lovett cozinha tartes com o recheio que vocês imaginam. Exatamente como no "Titus Andronicus" de Shakespeare, outro tratado amoral sobre a vingança humana.
Falei de Shakespeare? Precisamente. "Sweeney Todd" é de uma violência extrema. Mas é também de uma tristeza extrema: porque não existe destruição radical sem autodestruição radical. E o que comove em "Sweeney Todd" é contemplar um homem que, para retomar as palavras do bardo, é incapaz de sentir em si as "compungidas visitas da natureza" de que falava Lady Macbeth no mais terrível monólogo da literatura. E uma seqüência do musical de Sondheim (e do filme de Burton) ilustra essa desumanidade com assombrosa beleza: quando Todd, admirando as navalhas com que irá cometer os seus crimes, ergue um monumento musical e insano à vingança; e Mrs. Lovett, ao ouvido, sussurra-lhe palavras compassivas e apaixonadas sobre um futuro que eles jamais terão.
Gênios? Eles existem. Mas não existem na quantidade absurda que o analfabetismo cultural apregoa. Sondheim é um dos raros nomes que me faz acreditar na nobreza da arte. Porque ele relembra, como os clássicos antes dele, que no coração do sublime existem trevas.

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