É certo intervir no cérebro humano para alterar comportamentos agressivos ou mudar a má índole de criminosos?
Paula Neiva e Vanessa Vieira
O estudo do cérebro conheceu avanços sem precedentes nas últimas duas décadas, com o surgimento de tecnologias que permitem observar o que acontece durante atividades como o raciocínio, a avaliação moral e o planejamento. Ao mesmo tempo, essa revolução na fisiologia abre novas possibilidades para um campo da ciência que sempre despertou controvérsias de caráter ético – a interferência no cérebro destinada a alterar o comportamento de pessoas. Há duas semanas, um grupo de pesquisadores gaúchos ligados a duas universidades anunciou um projeto que vai estudar o cérebro de cinqüenta jovens homicidas, com idade entre 15 e 21 anos, detidos na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo, a antiga Febem de Porto Alegre. Os jovens serão submetidos a uma série de imagens e sons violentos enquanto uma máquina de ressonância magnética funcional analisará a atividade de várias regiões do cérebro deles, principalmente o lobo frontal. Estudos feitos nas últimas décadas apontam que alterações no funcionamento do lobo frontal, situado sob a testa, podem ser responsáveis por perturbações no juízo crítico e por um aumento da agressividade. O anúncio do projeto provocou reações de protesto. Um manifesto contra a pesquisa vem ganhando a assinatura de cidadãos e entidades ligadas aos direitos humanos. "Supondo-se que se confirme a hipótese de que há alterações no cérebro dos infratores, que uso se fará dessas informações?", pergunta a psicóloga Ana Luiza Castro, do Juizado da Infância e da Juventude de Porto Alegre.
À luz da ciência, a proibição da pesquisa gaúcha seria uma atitude obscurantista. Mas a pergunta da psicóloga do juizado merece reflexão. A neurociência representa a esperança de cura para doenças e debilidades físicas que hoje desafiam a medicina. Talvez um implante pode resgatar a saúde de anciões devastados pelo mal de Alzheimer, por exemplo. Daí à tentativa de usar esse conhecimento para "melhorar" o ser humano é um passo perigoso. O cinema tratou muito bem o assunto em Laranja Mecânica, do diretor americano Stanley Kubrick. No filme, o personagem principal, Alex, sofre uma lavagem cerebral para conter seus ímpetos violentos e os efeitos são devastadores. "Prejulgar uma pessoa com alteração no lobo frontal é incorreto e injusto. Só uma minoria com esse quadro causa problemas à sociedade", disse a VEJA o americano Henry Buchtel, do departamento de psiquiatria da Universidade de Michigan.
Caio Guetelli/AE |
Com o mal na cabeça |
Na Inglaterra, está em curso uma pesquisa que pretende interferir no comportamento dos criminosos jovens de três instituições penais, reduzindo o índice de violência entre eles. O estudo, patrocinado pela entidade beneficente Wellcome Trust, vai adicionar à dieta dos presos trinta suplementos alimentares, entre eles os ácidos graxos, presentes em substâncias como o óleo de fígado de bacalhau. Supõem os pesquisadores que os suplementos serão capazes de tornar os criminosos mais sociáveis. Os detratores do projeto dizem que não há maneira de aferir o resultado da dieta no cérebro dos presos. "É certo que há alimentos que beneficiam o cérebro como um todo, mas não há como dizer que um deles beneficie a área da comunicação, outro a dos julgamentos morais e por aí afora", diz a neurologista Lucia Mendonça, presidente da Sociedade Brasileira de Neuropsicologia.
Pesquisas que visam a estudar e modificar o comportamento de delinqüentes e psicopatas podem ser apresentadas à sociedade como uma solução ao problema da criminalidade. O questionamento ético inerente a esses estudos é evidente quando o comportamento anti-social esbarra em questões culturais. Os avanços da neurociência poderiam permitir aos aiatolás determinar uma intervenção médica no cérebro de uma mulher que se recusa a cobrir o rosto com véu de forma a "curar" sua rebeldia? No futuro, é possível que os testes para emprego exijam exames com tomografia ou ressonância magnética para avaliar se o cérebro do candidato tem características que o credenciem à vaga. Pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e do Rotman Research Institute, do Canadá, já contribuíram para esse cenário. Num estudo recente, eles avaliaram 36 pacientes que sofreram danos cerebrais como resultado de trauma ou retirada de um tumor benigno. Concluíram que as lesões no lobo frontal induzem a comportamento instável. "Nosso estudo mostra que danos em certas áreas do lobo frontal podem debilitar a capacidade de agir nas atividades rotineiras – um requisito-chave para conservar um emprego", afirma o coordenador do estudo, o psicólogo Donald Stuss. Os autores da pesquisa com jovens homicidas gaúchos argumentam que a análise das imagens cerebrais é apenas um braço do estudo. Serão avaliados também fatores como o histórico familiar e a condição socioeconômica dos criminosos. O objetivo, segundo eles, é ajudar a formular políticas públicas para evitar que os jovens desenvolvam comportamento violento. É fácil entender como o fato de nascer em famílias dilaceradas ou miseráveis induz os jovens ao comportamento anti-social. Já a influência da configuração do cérebro nesse processo é duvidosa e deixa em aberto a questão: até que ponto é aceitável intervir no cérebro humano.
Quando a ciência se volta contra a razão Três casos de monstruosidades científicas que tiveram respaldo oficial e hoje estão desmoralizadas ou são exemplos de pura perversidade 1 Uma tolice chamada frenologia Até meados do século XIX, a teoria do cientista alemão Franz Joseph Gall foi considerada revolucionária. Segundo ela, a conformação do crânio estaria relacionada ao caráter e ao intelecto do indivíduo. Ficou provado que a frenologia não tem nenhum fundamento científico. 2 Cientistas a serviço da tortura Entre as atrocidades cometidas pelos nazistas em nome da ciência estão os estudos que mantinham prisioneiros em tanques de água gelada durante três horas, sob o pretexto de investigar tratamentos para queimaduras. Os prisioneiros, evidentemente, morriam de hipotermia. 3 Técnica para destruir cérebros A lobotomia cortava os feixes nervosos do lobo pré-frontal do cérebro para curar prisioneiros agressivos e doentes psiquiátricos. A técnica valeu o Nobel de Medicina de 1949 ao português António Egas Moniz, mas deixava os pacientes em estado de apatia grave, desligados do mundo, e hoje está desacreditada. |
A revolução causada pelas imagens
No passado recente, quando um cirurgião extirpava um tumor cerebral e o paciente apresentava seqüelas como alterações na fala ou na interação social, só lhe restava deduzir que a área em que a intervenção foi feita estava ligada a essas atividades. Hoje, o cenário é bem diferente. As duas últimas décadas foram férteis em descobertas sobre o órgão mais complexo do corpo humano. Boa parte das conquistas se deve aos exames por imagem. Por meio sobretudo da ressonância magnética e do PET/CT, tornou-se possível capturar imagens nítidas do cérebro e até mesmo flagrá-lo em funcionamento. Esses recursos descortinaram um novo horizonte na medicina. Eles aumentam de forma exponencial a precisão das cirurgias. Fornecem dados para o desenvolvimento de métodos mais eficazes para o diagnóstico e o tratamento farmacológico de doenças como o mal de Alzheimer e o alcoolismo. Por outro lado, a evolução dos exames por imagem também abre portas para tratamentos destinados a modificar o funcionamento do cérebro e, conseqüentemente, alterar o comportamento de seu portador. Será esse um procedimento desejável na medicina? Esse é o desafio ético que se coloca a médicos e cientistas.