Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, junho 10, 2008

Ali Kamel Caetano e Obama



O Globo
10/6/2008

Há um paralelo entre o momento histórico que os EUA vivem, com a nomeação de Barack Obama como candidato à Presidência, e o que nós vivemos aqui, quando o Congresso e o STF estão para decidir sobre a racialização da sociedade brasileira. Infelizmente, paralelos com sentidos opostos. Enquanto Obama, sem negar as divisões "raciais" que ainda mancham o seu país, representa uma tentativa de enxergar o mundo para além da noção de "raça", no Brasil, vemos uma boa parte dos brasileiros, que sempre se orgulharam de nossa miscigenação, querendo enxergar a nação dividida entre duas "raças", negros e brancos irremediavelmente apartados. Na quarta-feira, Caetano Veloso analisou o assunto em seu show "Obra em progresso". Às vezes, só mesmo um artista para serenar ânimos e servir de ponte entre duas visões que não são totalmente opostas.

Caetano começou cantando "Sugar cane fields forever", do disco "Araçá azul", que compôs na década de setenta. A letra, curta, diz muito a respeito dele e de nós: "Sou um mulato nato, no sentido lato, mulato democrático do litoral." Considerando que 87% dos brasileiros têm uma ancestralidade genômica africana maior do que 10%, poderíamos tranqüilamente dizer que a canção é um hino nacional informal. Pela genética e pela cultura, somos todos mulatos. Essa é uma verdade inescapável e, como diria Darcy Ribeiro, é a nossa originalidade como povo, a nossa contribuição como nação para o mundo. Depois de cantarolar a música, Caetano lembrou o que Obama disse a um jornalista brasileiro: "Eu não pareço um brasileiro?" Em seguida, Caetano contrapôs a visão dele, que enfatiza a mestiçagem, à de outros, que rejeitam termos como mulato, cafuzo e mameluco, em favor apenas do rótulo geral de negro, considerado por eles mais forte, mais enfático. Mais forte? Mais enfático? Caetano pareceu discordar: "Eu gosto mais de preto do que de negro." E concluiu: "O fato é que Barack Obama está querendo imitar os brasileiros. E muitos brasileiros estão querendo imitar os EUA pré-Barack Obama."

Não se tratou de negar o racismo que existe aqui, como em todo lugar onde existam homens reunidos. Em outra parte do show, Caetano fez uma análise intrigante da canção "Feitiço da Vila", de Noel Rosa, que ele chamou de um dos "pais fundadores de nosso país". Para quem não lembra, a letra diz assim: "Lá em Vila Isabel, quem é bacharel não tem medo de bamba. São Paulo tem café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba. A Vila tem um feitiço sem farofa, sem vela e sem vintém, que nos faz bem. Tendo o nome de princesa, transformou o samba num feitiço decente que prende a gente." Caetano relembrou a rivalidade entre Wilson Batista, "mais para preto", e Noel, "mais para branco", e demonstrou que a canção quis livrar o samba de sua negritude, transformando-o num feitiço do bem, feito por bacharéis brancos, longe, portanto, da macumba dos negros do morro, que faz, por oposição, o mal, coisa de bamba. Caetano disse: "Essa é uma canção, um clássico, do qual ninguém esquece, e que todos amamos muito. Mas é uma canção que sempre me deixou com uma imensa pulga atrás da orelha. Porque é uma canção de afirmação da classe média letrada contra os sambas do morro, próximos do candomblé." E arremata, com coragem: "Basicamente, é uma canção racista." Caetano não disse isso sem um certo susto: "A gente tem de admitir que isso aconteceu."

É exatamente isso. O mesmo país miscigenado que tornou pioneiramente o conceito de "raça" inaplicável e retrógrado é capaz de produzir uma pérola de nossa cultura que, numa análise conteudística crua, se revela prisioneira de um preconceito bárbaro, no sentido de pré-civilizado. Caetano parece indicar que a solução para esse paradoxo não é apostar na estratégia de aprofundar a divisão em "raças" para promover a superação do preconceito que persiste aqui sem ser predominante, mas enfatizar os laços que fazem de nós uma mestiçagem inédita no mundo para tornar ainda mais bárbara, e repugnante, toda manifestação de racismo.

É algo em que Obama, vivendo numa sociedade ainda hoje dividida em "raças" estanques, tenta apostar: não negando as divisões, mas tentando olhar adiante, sem distinguir as pessoas pela cor da pele. No dia em que se sagrou candidato, ficou evidente que ele está mesmo à frente da sociedade que pretende representar. Quando atingiu o número suficiente de delegados para ser o candidato, todos os comentaristas, antes de ouvir o discurso de Obama, enfatizaram o fato histórico de que ele se tornara o primeiro candidato "afro-descendente" a disputar a Presidência por um partido grande. Obama, não. Em seu discurso da vitória, para espanto geral, contrariando o que seria visto como um dado natural, ele não mencionou uma única vez sua condição de "afro-descendente". Preferiu repisar o seu programa político. Essa omissão era em si a parte mais visível de seu ideário: uma América pós-"racial". Obama quer imitar os brasileiros, não porque aqui não haja racismo, mas porque, aqui, sempre preferimos, ao menos como ideal, enaltecer a mistura e não a divisão.

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