O Globo |
24/6/2008 |
No debate sobre a racialização da sociedade brasileira, algumas aberrações são deixadas de lado: os tribunais "raciais" que existem em pelo menos duas universidades, na UnB e na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Não se trata de ser contra ou a favor das cotas; ninguém pode ser a favor de um absurdo assim. Como pode um grupo se dar o direito de julgar, pela aparência, quem é negro ou pardo e quem não é? O que faz o Ministério Público que não impede que algo assim continue ocorrendo, como se fosse a coisa mais natural do mundo? Na UnB, o candidato que optar por disputar o vestibular pelo sistema de cotas faz as provas como todos os outros candidatos. No prazo máximo de dez dias após os exames, os melhores em cada carreira são chamados para um julgamento. A proporção é de dois candidatos para cada vaga oferecida no sistema de cotas: assim, se o curso de Administração oferece dez vagas, os vinte melhores estudantes que se inscreveram na carreira pelo sistema de cotas serão chamados para que, num julgamento, o tribunal decida se eles são mesmo negros ou pardos. Se o tribunal decidir positivamente, suas notas serão apuradas dentro do sistema de cotas. Se decidir que eles são brancos, a punição é atroz: os estudantes são simplesmente eliminados do vestibular, não importando a nota que tiverem obtido no teste. Eles sequer têm o direito de ter as suas notas computadas pelo sistema universal de vagas. É um total absurdo. O edital diz que o aluno deve decidir se é pardo ou negro. O aluno pode se olhar no espelho e se ver da cor que quiser, é um direito dele. Não se trata de mentira. Mas, se a concepção que faz da cor da sua pele não coincidir com a de seus juízes "raciais", ele será punido. Nossas leis permitem essa agressão? Os autores de tal regulamento não se dão conta do que fazem? A injustiça do método fica ainda mais patente quando tomamos conhecimento de que os alunos que se inscreveram no sistema de cotas, mas não foram chamados para o julgamento, têm as notas auferidas pelo sistema universal, junto com todos os demais alunos. Ou seja, eles se consideram negros ou pardos, mas, como não tiveram um bom desempenho nas provas, deixam de ter direito ao benefício das cotas. Provavelmente, são os alunos mais carentes, aqueles que tiveram um ensino pior. O resultado desse sistema perverso é que, na prática, as cotas da UnB beneficiam apenas os alunos mais ricos entre aqueles cuja cor de pele for julgada como tendo o tom adequado. Aos mais pobres, que tiveram um ensino pior, mesmo negros, será negado o sistema de cotas. Sob que aspecto se pode dizer que isso é justo? Na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, a cota se destina apenas aos alunos da escola pública ou que tenham estudado em escolas privadas com bolsa integral. À primeira vista, o sistema quer beneficiar os mais pobres entre aqueles que forem julgados negros ou pardos. Seria um pequeno avanço, mas qual a justificativa de deixar de fora os brancos igualmente pobres, se, no Brasil, eles formam um enorme contingente de 19 milhões de pessoas, um número maior do que a população de muitos países no mundo? Não faz sentido, é cruel, promove a cisão "racial" da pobreza sem que haja alguma justificativa que faça sentido. O pior, porém, é o método para se descobrir quem é negro e quem é pardo. Em pleno século XXI, dá um nó na alma verificar que ainda existem pessoas que dividem a Humanidade em "raças". Todos os inscritos devem apresentar uma foto tamanho 5x7. Um tribunal de seis a sete pessoas fará o julgamento, mas, note, a cor do candidato só será chancelada como negra ou parda se obtiver um mínimo de cinco votos, praticamente a unanimidade. E quais são os critérios? Nas palavras dos organizadores, os candidatos serão julgados segundo tenham ou não as seguintes características: "a) pele muito pigmentada (melanina), b) nariz achatado, c) cabelo pixaim (carapinha); d) lábios carnudos (grossos)". Ao estudante de pele suficientemente escura (o que será isso?), basta essa característica: se a cor da pele for bem escura, ele pode ter cabelo liso, nariz afilado e lábios finos, não importa. O estudante pardo terá de apresentar sempre duas características, já que o tom de pele, por definição, nunca é escuro o bastante. Para que o leitor tenha a dimensão do grotesco de se julgar tal coisa, vou enumerar aqui as possibilidades: nariz achatado e cabelo pixaim, ou nariz achatado e lábios grossos, ou lábios grossos e cabelo pixaim. Se o estudante pardo tiver apenas o cabelo pixaim, mas o nariz afilado e os lábios finos, estará fora do sistema de cotas. O mesmo acontecerá se ele tiver o nariz achatado, mas os cabelos lisos e os lábios finos. Em plena era da genética, quando qualquer estudante sabe que o filho de um pai negro e uma mãe branca (ou vice-versa), dependendo da ancestralidade do casal, pode ter todos os tipos de fenótipos, como o Estado permite que uma universidade arquitete um conjunto de regras como as que acabo de descrever? Para se dar conta do horror, basta imaginar que outra universidade decida criar cotas para pobres, mas apenas os brancos, e, para isso, crie um tribunal semelhante exigindo que o candidato de pele menos clara tenha ao menos duas das seguintes características: a) lábios finos, b) cabelos lisos e c) nariz afilado. No vestibular de 2007, o tribunal "racial" da UnB julgou e condenou 34 estudantes, que, por não terem sido considerados negros o suficiente, foram sumariamente eliminados do vestibular. No mesmo ano, 162 alunos foram julgados pelo tribunal "racial" da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e condenados pelo mesmo crime. Este ano, quantos mais serão? Até quando o Ministério Público vai permitir esse horror? Estudantes estão sendo punidos pela cor da pele. Isso é racismo. |
Entrevista:O Estado inteligente
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Tribunais 'raciais' - Ali Kamel
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