Morre uma parte da civilidade, da inteligência, do rigor intelectual, da discrição, da altivez decorosa. Ruth Cardoso foi uma das melhores pessoas que conheci — escrevo isso como jornalista, não como amigo ou pessoa que privasse da intimidade do casal Cardoso, o que nunca aconteceu. Em junho de 1997, há exatos 11 anos, a revista República dedicou-lhe uma capa: era uma entrevista que eu havia feito com ela.
Foi um encontro agradável, ameno, sereno. Seu marido, o então presidente Fernando Henrique, ela própria e o Comunidade Solidária, programa que presidia e ao qual continuou a dedicar boa parte de seu tempo mesmo depois que FHC deixou o poder (aí com o nome de Comunitas), eram alvos dos ataques da esquerda petista os mais boçais. Tentei arrancar dela uma palavra mais dura contra os detratores. Nada! Imperturbável, serena, expressava a convicção de que o presidente estava criando as bases para tirar o país do atoleiro do Terceiro Mundo e do terceiro-mundismo e defendia com energia o aspecto não-assistencialista do Comunidade Solidária. E estava certa nos dois casos. Ruth sabia ser dura sem ser estridente.
Nada a irritava mais — e ela se encarregou de proibir tal tratamento — do que ser chamada de “primeira-dama”. Por que não? Ela me explicou: “Porque é uma tradução muito literal, imediata, do termo em inglês, que tem história. Não passaria pela cabeça de ninguém, nos EUA, dizer que não gosta da expressão first lady. Aqui no Brasil, dama não é um termo que se use...” E foi adiante, explicando que a expressão, em nosso país, designava um outro tipo de mulher. Segundo Ruth, a mulher de presidentes e chefes de governo, na modernidade, “são profissionais, pessoas que têm independência intelectual e pessoal”.
Pois é...
Foi um encontro agradável, ameno, sereno. Seu marido, o então presidente Fernando Henrique, ela própria e o Comunidade Solidária, programa que presidia e ao qual continuou a dedicar boa parte de seu tempo mesmo depois que FHC deixou o poder (aí com o nome de Comunitas), eram alvos dos ataques da esquerda petista os mais boçais. Tentei arrancar dela uma palavra mais dura contra os detratores. Nada! Imperturbável, serena, expressava a convicção de que o presidente estava criando as bases para tirar o país do atoleiro do Terceiro Mundo e do terceiro-mundismo e defendia com energia o aspecto não-assistencialista do Comunidade Solidária. E estava certa nos dois casos. Ruth sabia ser dura sem ser estridente.
Nada a irritava mais — e ela se encarregou de proibir tal tratamento — do que ser chamada de “primeira-dama”. Por que não? Ela me explicou: “Porque é uma tradução muito literal, imediata, do termo em inglês, que tem história. Não passaria pela cabeça de ninguém, nos EUA, dizer que não gosta da expressão first lady. Aqui no Brasil, dama não é um termo que se use...” E foi adiante, explicando que a expressão, em nosso país, designava um outro tipo de mulher. Segundo Ruth, a mulher de presidentes e chefes de governo, na modernidade, “são profissionais, pessoas que têm independência intelectual e pessoal”.
Pois é...
Ruth tinha, sim, tal independência intelectual e pessoal, como sabem todos aqueles que privaram da intimidade do casal Cardoso: diante do presidente, do marido, do PSDB... Não era do tipo que condescendesse com o interlocutor para ser agradável. De uma educação sempre exemplar, sabia discordar e dizer “não”, quando necessário, sem ambigüidades.
Não faz três meses, os tontons-maCUTs que tomaram a política de assalto tentaram enredá-la numa acusação de uso irregular do dinheiro público. Quando ficou claro que o governo havia feito um dossiê para tentar jogar na lama o seu nome e o do marido, tanto ela como FHC defenderam que se desse plena publicidade aos gastos. Dilma Rousseff, de quem falarei daqui a pouco, ligou para a sua casa para negar, vejam só, a existência do dossiê. E, no entanto, ele existia.
Era, em suma, a voz do avesso do que Ruth sempre foi: transparente, austera, de caráter reto, hostil a chicanas, sem jamais precisar desdizer no dia seguinte o que dissera no anterior. Ao telefone, Dilma tentou tranqüilizá-la à sua maneira: ela poderia ficar tranqüila, que os gastos continuariam sob sigilo. A interlocutora da ministra era gente de outra cepa. E ficou, é claro, bastante intranqüila com tão generosa promessa: afirmou à ministra que ela, Ruth, fazia questão de que tudo fosse divulgado. Porque nada havia a esconder. A mulher de FHC, em suma, não tinha segredos a serem guardados por Dilma.
Ruth tinha dois stents no coração. Era uma paciente cardíaca, o que pouca gente sabia porque ela jamais permitiu qualquer zona de ambigüidade entre a vida privada e a sua atuação pública. Ainda que lhe faltassem muitas outras qualidades, tinha uma que faz uma falta imensa ao país: decoro. É isto: Ruth morreu, e o país ficou menos decoroso.
Um golpe imenso para o seu parceiro de 56 anos, Fernando Henrique Cardoso.