Manezão gostava de brincadeiras brutas, agressivas. Um senso de humor esquisito. Era o chefe de disciplina do colégio. Ele entregou ao mais franzino dos dois meninos pobres de Garanhuns, que entravam na escola pela primeira vez, um balde e uma vassoura e disse: “Este é seu lápis, este é seu caderno!” Eles teriam que trabalhar na limpeza para ter bolsa para estudar no renomado colégio XV de Novembro.
A mãe dos meninos tinha pedido bolsa aos diretores durante um encontro na escola dominical, na Igreja Presbiteriana. Analfabeta, extremamente pobre, queria que os filhos estudassem. Sonho antigo e persistente. Foi por ele que decidiu sair de Recife e tentar a sorte no interior do estado. — Vamos para Garanhuns que os meninos precisam estudar — disse ao marido. Eram os anos 20 do século passado. O analfabetismo era dominante no Nordeste; ela queria para os filhos outro destino. Bolsa, os diretores americanos, que fundaram o colégio, avisaram que não davam. Mas aceitaram que dois deles estudassem de graça, se concordassem em trabalhar no colégio. O mais velho dos dois irmãos que ganharam a bolsa-trabalho tinha 13 anos; o mais novo, 11. Anos depois, a família conseguiu que entrasse nesse grupo o caçula, então com 7 anos.
De tarde, eles varriam as salas e lavavam os banheiros.
De madrugada, espanavam as carteiras e mesas.
Depois iam para a aula como todos os alunos. A mãe orientava que só vestissem o uniforme após terminada a limpeza e depois que se limpassem no banheiro do colégio. Ela sempre entregava a eles uniformes limpinhos, que, às vezes, secava no ferro durante a noite.
Nem sempre estavam bem alimentados.
— Trabalhávamos para estudar e ainda passávamos fome — relatou recentemente o mais novo dos irmãos.
Foram eternamente gratos à oportunidade que receberam e retribuíram estudando muito. Os três foram alunos brilhantes, de pontuar nos primeiros lugares, de queimar etapas com provas no estilo supletivo.
Orientados pelos diretores e professores do XV de Novembro, continuaram seus estudos para além do ginásio, além de Pernambuco.
Os três foram para o seminário presbiteriano em Campinas. O curso era apertado, nota mínima 8. Estudavase não apenas teologia.
Saía-se de lá com várias licenciaturas, para o trabalho de professor do ensino médio. No seminário, o menino que recebera de Manezão o balde e a vassoura tinha tão bom desempenho, esforçava-se para falar português tão irretocável, que recebeu o apelido de “mulatinho pernóstico”.
Ele dava de ombros, porque sabia dos seus sonhos e estava decidido a realizá-lo: sonhava dirigir um colégio e, quando estivesse nesta situação de poder, dar bolsa a meninos pobres, como ele, que teriam então a chance que teve. Era isso que pedia nas orações que costumava fazer num morro de Garanhuns chamado Monte Sinai. Passava por lá entre um biscate e outro que fazia — de vendedor na feira a pintor — para ajudar a renda baixíssima e instável da família. O pai era pedreiro em frente de obras, nem sempre tinha trabalho e renda.
Quando se mudou, aos 28 anos, para o Vale do Rio Doce, fundou, em Caratinga, junto com outros líderes locais, o primeiro ginásio da região.
Como diretor, fazia exatamente aquilo a que se propôs na adolescência: distribuía muita bolsa de estudo. Não o fazia em troca de trabalho. A alguns dos bolsistas mais velhos, muito pobres, também ofereceu trabalho assalariado no colégio.
Os três se dedicaram à educação, os três se dedicaram à igreja. Dividiam-se entre as duas frentes de trabalho.
Como acreditavam no ensino laico, não misturavam as duas. Foram excelentes professores nas escolas onde ensinaram. Foram brilhantes oradores nas igrejas.
A fé em Deus era inabalável, a paixão laica que tiveram era a educação. O mais novo e o mais velho também fizeram Direito.
Dos três, o mais dedicado à educação foi o do meio, exatamente o menino franzino que tinha recebido o balde e a vassoura. Além do colégio que fundou e fez prosperar em cursos superiores, abriu escolas públicas em outras cidades, a pedido do governo do estado, na época da interiorização do ensino fundamental em Minas Gerais.
Ele mesmo estudou a vida inteira, como autodidata e leitor voraz, os mais variados assuntos: da filosofia à física quântica.
Tiveram sempre orgulho de terem trabalhado para conquistar o direito de estudar num colégio de excelente qualidade de ensino.
Nunca se deram conta de que trabalhar cedo demais era um absurdo. Achavam que foi uma troca justa à qual lhes coube corresponder.
De Manezão, vingaramse fazendo dele uma figura folclórica nas famílias que constituíram. “Brincadeira de Manezão” passou a ser a expressão que designava a atitude de humor grosseiro, da pessoa que agride, quando tenta brincar.
O mais velho, Boanerges, morreu aos 62 anos. O mais novo, Nathanael, está vivo e lúcido aos 85 anos. O do meio, o menino franzino, alvo da brincadeira do Manezão, é Uriel, o meu pai. Ele morreu exatamente há 10 anos, em 29 de junho de 1998. Quando estava velando seu corpo, um homem se aproximou de mim e disse que tinha sido menino de rua até que meu pai lhe deu bolsa no colégio e no internato, e tinha virado juiz de direito. Outro contou que trabalhava na roça, era analfabeto, até a visita do meu pai. Passou a estudar e virou gerente de banco. Histórias assim foram me enchendo de orgulho naquele dia difícil.
Nathanael, meu tio, fez o sermão do culto de ação de graças pela vida dele. Ao lado do corpo do irmão, começou dizendo: “Este homem sonhou. Convém sonhar.” Essa história sedimentou em mim a confiança na força da educação.
Entrevista:O Estado inteligente
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