Ana Araujo |
O ministro Ayres Britto: contra a candidatura de políticos com biografia desabonadora |
Está em curso uma discussão fascinante do ponto de vista filosófico e essencial no que se refere ao lado prático. Ela gira em torno da seguinte questão: é possível impedir que pessoas com ficha criminal se candidatem a cargos eletivos? A alimentar o debate há uma constatação de deixar perplexos os cidadãos que prezam a sua própria ficha limpa, como mostram os gráficos da reportagem publicada na página 64. Na Câmara, 39% dos deputados são acusados, nos tribunais, de cometer delitos graves. No Senado, a porcentagem sobe para 42% dos parlamentares. Em Goiás, espantosos 71% dos deputados estaduais são réus em processos cabeludos. O Poder Executivo também se encontra tisnado por problema idêntico. Inúmeros prefeitos e candidatos ao posto apresentam folha corrida preocupante. Ora, como é que pessoas encarregadas de criar, aprovar e aplicar as leis podem ser suspeitas, perante a Justiça, de agir ao arrepio delas? Boa parte desses políticos ou ainda não foi julgada ou foi condenada apenas em primeira instância. E é em relação a tal ponto que a discussão avulta. De acordo com a Constituição brasileira, que ecoa o princípio estabelecido no século XVIII, o cidadão é considerado inocente até que seja condenado em última instância.
A presunção de inocência é uma conquista da civilização. Protege a todos contra arbitrariedades do estado e de poderosos. Mas, no Brasil, o conceito lapidar, fruto da melhor filosofia jurídica, vem sendo usado para manter o caminho aberto aos larápios da política – que contam, além do mais, com a lerdeza judiciária para que os processos de que são réus nunca cheguem à derradeira instância. Em vista da situação, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado examina um pacote que altera as regras que regem as candidaturas. Por ele, passariam a ser inelegíveis aqueles já condenados em primeira instância, no caso de corrupção e crimes hediondos. Talvez seja complicado aprová-lo, pois o pacote relativiza a presunção de inocência. A discussão, no entanto, continua acalorada. Um magistrado ilustre, como o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o ministro Carlos Ayres Britto, defende a idéia de que sejam impedidos de concorrer indivíduos com "um número incomum de processos, com fatos públicos e notórios de desabono de sua personalidade". Independentemente de uma nova legislação ser ou não chancelada, nada impede que os partidos, ao analisar as biografias dos eventuais candidatos, ponham de lado os "fichas-sujas". Seria uma forma louvável de autolimpeza, que não feriria o ordenamento jurídico e aumentaria a confiança dos brasileiros em sua democracia.