editorial |
O Estado de S. Paulo |
27/6/2008 |
O desaparecimento de uma figura pública de grande notoriedade no Brasil costuma ser seguido de um verdadeiro torneio de hipocrisias. Experts na arte de elogiar, os políticos são os primeiros a perverter o ditado latino De mortuis nil nisi bonum - dos mortos só se deve falar bem. Quando um dos seus pares se vai, mesmo encarniçados desafetos, em vez de se calar, ofendem a sensibilidade alheia derramando-se em loas ao finado que ostensivamente abominavam. Tanto mais extraordinária, por isso, a espontaneidade das manifestações de pesar pelo falecimento da antropóloga Ruth Corrêa Leite Cardoso. Mais ainda, a autenticidade do reconhecimento das qualidades humanas e dos atributos intelectuais que assinalaram a trajetória da professora, pesquisadora, depois como esposa do presidente da República, como incentivadora de pioneiras iniciativas políticas, no melhor sentido do termo - antes até de transfigurar a imagem que a convenção associava às mulheres de chefes de governo e de Estado. E foi o sucessor do seu marido no Palácio do Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva, um dos primeiros a dar o tom das reações cristalinamente espontâneas à sua morte súbita, na terça-feira à noite, aos 77 anos. Pouco depois, com palavras calorosas que traduziam, sem dúvida, a sinceridade dos seus sentimentos e das suas apreciações, o presidente exprimiu em nota oficial a sua dificuldade em acreditar na partida da “intelectual determinada com convicções firmes, gestos nobres e, ao mesmo tempo, sensibilidade para o drama da desigualdade social”, a quem conhecia há décadas e cuja vida pública acompanhou de perto. Lula fez questão de creditá-la pelas “sementes que plantou em sua brilhante carreira, por iniciativas como o Programa Comunidade Solidária”. Raridade em textos do gênero, nada nele soa postiço - nem sequer a expressão que quase sempre é apenas um lugar-comum “uma grande perda para o País”. Nem tampouco, os votos de conforto para “o amigo Fernando Henrique”. Os ritos fúnebres nos dias seguintes - o velório na Sala São Paulo e o sepultamento no Cemitério da Consolação - foram marcados por idêntica consternação, afeto e respeito genuínos. Houve como que uma natural sincronia entre a autenticidade da dor do adeus a Ruth e a autenticidade com que viveu a sua vida. Ela foi uma dessas pessoas incomuns que fazem por merecer a admiração de todos quanto as conheçam pelo fato de serem duplamente íntegras - no sentido ético e no de inteireza de personalidade, pensamento e conduta. Desde que o marido, um intelectual consagrado, resolveu entrar na política, candidatando-se a prefeito de São Paulo, em 1985, uma contrafeita Ruth empenhou-se, com um rigor estranho para os costumes nacionais, em demarcar as fronteiras entre o seu cotidiano pessoal, familiar e profissional e as insalubres rotinas partidárias e eleitorais - que ela abominava - em que o companheiro mergulhara. Por reserva e senso de preservação, sim. Mas também, coerentemente, por sua crença visceral no princípio da separação entre o público e o privado - a que se ateve enquanto Fernando Henrique passava de senador a ministro e, enfim, a presidente. Sem essa inteireza de caráter e atitudes, talvez tivesse tido mais dificuldades para acender uma luz própria. E esta só se intensificou com o passar dos anos, especialmente na volta do exílio, quando deu início a pesquisas pioneiras no Brasil sobre os movimentos sociais e as chamadas relações de gênero - e, enfim, como articuladora de novas políticas de combate à pobreza e dirigente do Comunitas, uma rede de ONGs. Embora exigente com as suas equipes e habituada a externar juízos fortes nos ambientes que lhe eram afins, tinha trato fácil com as pessoas comuns, que a consideravam “humilde” - o oposto de “arrogante”. Não será descabido pensar que a memória de Ruth Cardoso, ao aproximar nestes dias representantes de correntes que divergem entre si, quando não se antagonizam, fez circular, pela atmosfera pestilencial em que se processa o embate político no Brasil, um sopro de ar puro. A convergência de opiniões e os sentimentos compartilhados indicam que até os protagonistas da cena política nacional sabem identificar as coisas certas que se podem fazer pelo País. E aplaudir os autores do bem. É um fecho apropriado para uma biografia admirável. |
Entrevista:O Estado inteligente
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sexta-feira, junho 27, 2008
O adeus a Ruth Cardoso
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