PANORAMA ECONÔMICO |
O Globo |
26/6/2008 |
Para a mulher independente, sempre dona dos seus próprios pensamentos e posições, que nos anos 50 rompia pela inteligência os limites que sempre aprisionaram a mulher, era difícil aceitar um rótulo de significado tão velho quanto o de "primeira-dama". Foi por isso - e não por uma idiossincrasia qualquer - que a antropóloga Ruth Cardoso avisou à imprensa que não gostava do termo. Perdeu essa pequena batalha, porque os jornais continuaram usando o mesmo e surrado rótulo. Ganhou a guerra, ao revolucionar o papel exercido pela mulher do presidente. Não interferia no governo, mas influenciava as políticas públicas; não aceitou ser a repetidora de políticas assistencialistas e mudou o rumo das políticas sociais; conservava sua independência de pensamento e não provocava polêmicas. Hillary Clinton também era mulher independente e inteligente, mas, ao tentar mudar o Health Care americano, invadiu o espaço de quem foi eleito para governar e fez um projeto polêmico. Depois se viu que ela queria mesmo era fazer sua própria carreira na política. Cristina Kirchner já tinha um caminho próprio na política, no entanto, ao suceder ao marido, continua à sua sombra. Reinventar de forma contemporânea esse papel é uma arte difícil na qual Ruth Cardoso mostrou maestria. Como o velho script não lhe servia, criou um roteiro novo. A LBA, que trazia a marca indelével de assistencialista e que, no governo Collor, foi alvo de denúncias de corrupção, foi fechada. O Comunidade Solidária era um conceito inteiramente novo. O órgão era um articulador e não um executor de políticas, por isso tinha orçamento enxuto e poucos funcionários. Ruth fazia a articulação entre financiadores privados de políticas sociais - fossem empresas ou instituições - e as vítimas das tragédias sociais brasileiras. Uma companhia, por exemplo, era convocada a adotar uma cidade com alto índice de analfabetismo. O Comunidade Solidária ligava quem podia participar desse mutirão e os que necessitavam as ações do Estado e da elite brasileira. Ruth convocava intelectuais, especialistas, profissionais de diversas áreas para encontros de avaliação das políticas públicas. Ela comandava horas seguidas de reunião em que as pessoas de fora do governo falavam livremente. As críticas mais duras não a abalavam. Com sua experiência de coordenação de debate acadêmico, extraía das críticas e apoios o que era útil para aperfeiçoar as políticas. Foi assim que levou para o governo várias idéias novas. Ela achava, por exemplo, que o Brasil precisava incentivar o voluntariado que, em outros países, leva multidões à prática de ações, individualmente pequenas, mas que na soma mudam realidades. Conseguiu isso. Hoje o voluntariado é mais disseminado no país. Para construir essa nova atitude, não hesitou em resgatar um velho símbolo do governo militar: o Projeto Rondon, em que universitários vão a áreas remotas do Brasil. Ruth manteve suas atividades intelectuais, a participação em debates e seminários acadêmicos e até em cursos nas universidades. Durante o governo Fernando Henrique, chegou a passar pequenos períodos em universidades americanas dando cursos na sua área de especialização: a antropologia. Sua obsessão era a educação, Ruth foi a vida inteira uma educadora num país em que este tem sido - e vai continuar sendo por muito tempo - o grande calcanhar-de-aquiles, mas ela tinha idéias próprias, de como fazer o resgate dos analfabetos até o papel das universidades públicas. Não é fácil modernizar sem provocar controvérsias, não é fácil revolucionar sendo discreta. Mas Ruth conseguiu isso tanto no papel requerido e esperado da mulher do presidente da República, quanto na orientação das políticas sociais no Brasil. Foi ela quem levou para nível federal uma política que nasceu em Campinas, na administração do PSDB, o Bolsa Escola. Depois de Campinas, a proposta tinha evoluído pela ação de outros partidos, como o PT, então com Cristovam Buarque, e o PSB, na época com Célio de Castro. Quando chegou ao governo federal, o Bolsa Escola acabou sendo o embrião para o Bolsa Família, um programa muito mais amplo. Ruth ajudou, assim, os brasileiros - seja acadêmicos especializados em políticas de combate à pobreza, militantes de causas sociais ou políticos, de diversos partidos - nesta construção coletiva de uma política social mais moderna. Não mais a cesta básica, mas, sim, a transferência de renda direta aos mais pobres. Não mais a dívida eterna dos de menor renda a um político específico, mas a construção do cidadão portador de direitos. Hoje essa idéia se firmou e evolui sob críticas e aperfeiçoamentos, com retrocessos e avanços, mas já é vitoriosa. Ainda que as velhas práticas não tenham sido varridas. O velho sempre teima em ficar, porém, na luta com o novo, vai se enfraquecendo. Ruth deixou sua marca nessa caminhada coletiva por um país mais moderno e mais justo; deixou sua marca no pensamento brasileiro com seus livros, cursos e teses que orientou; deixou sua marca na história do avanço da mulher brasileira. Não venceu o rótulo, ainda é perseguida pelo título de que não gostava, ainda é definida nos jornais como a ex-"primeira-dama". Mas sua atitude renovou o rótulo. Hoje o país já sabe que esse papel pode ser contemporâneo. |
Entrevista:O Estado inteligente
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