O Globo |
27/6/2008 |
Foi sem dúvida um momento simbólico importante na história política brasileira o comparecimento do presidente Lula e uma comitiva de vários ministros ao velório da ex-primeira-dama Ruth Cardoso, enterrada ontem. O próprio presidente comentou que as ligações entre o PT e o PSDB são tantas que o Aerolula quase não foi suficiente para levar tanta gente de Brasília a São Paulo. Em diversos momentos nestes últimos anos o presidente Lula se manifestou, em público ou em conversas reservadas, a favor de uma maior aproximação com os tucanos, e também o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso já revelou seu desapontamento pelo fato de Lula não ter procurado o PSDB para um acordo político. Ao contrário, ressaltou, tratou de marcar o PSDB como o adversário direto, e se aliou à ala política mais retrógrada, o que gerou o mensalão e uma política fisiológica exacerbada. A união entre petistas e tucanos só seria possível, porém, se prevalecesse entre os dois grupos políticos uma visão de Estado semelhante, para evitar esse fisiologismo de uma base partidária anódina que sustentou tanto o governo tucano quanto o de Lula, às custas de exigências de repartição de cargos públicos. A organização do Estado brasileiro, no entanto, se distancia cada vez mais e mostra-se diametralmente oposta na visão dos dois partidos. É no mínimo curioso notar que somente com o falecimento de Ruth Cardoso o PSDB assumiu a autoria da criação da rede de proteção social que teve início com o Comunidade Solidária, que ela montou nos oito anos de governo de seu marido. Foi essa rede, que tinha o Bolsa Escola como principal programa, que serviu de base para o Bolsa Família, passo lógico dado pelo governo Lula na unificação dos vários programas sociais existentes, que já estava sendo preparada pelo Comunidade Solidária. O caso do dossiê montado dentro da Casa Civil com gastos supostamente irregulares ou extravagantes da gestão anterior não foi o primeiro atrito na administração Lula envolvendo dona Ruth. Um dos primeiros embates entre as gestões Lula e Fernando Henrique teve justamente o cadastro único dos programas sociais como pivô. Os gestores do Fome Zero, que seria um guarda-chuva para os programas sociais da Era Lula, criticaram o cadastro herdado do Comunidade Solidária, o que fez Ruth Cardoso vir a público defender os critérios adotados. Mas ela considerava que fora prematura a união dos cadastros, que não estavam suficientemente avaliados, e também criticava a ampliação do programa. Os dois fatos juntos criaram maiores problemas na administração dos programas, na sua visão. E criticava também a redução das condicionalidades para receber as bolsas. Outro defeito sério que ela via era o Bolsa Família não ter uma meta para atingir. No final, foi mesmo o cadastro herdado do governo anterior que serviu de base para o início da unificação dos programas. O Comunidade Solidária nasceu, aliás, de uma experiência inédita que havia sido criada no governo Itamar Franco, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea). Quando Fernando Henrique era ministro da Fazenda, colocou na agenda do presidente da República a questão do combate à fome e à miséria como prioridade nacional, idéia depois apropriada pelo governo Lula de maneira muito competente. A antropóloga Ruth Cardoso sempre defendeu a articulação das ações públicas como a melhor estratégia para o enfrentamento das grandes carências sociais, e por isso, ao criar a Comunidade Solidária, o governo de Fernando Henrique extinguiu dois "ministérios-balcões", o da Integração Regional e o do Bem-Estar Social - não à toa recriados na gestão Lula -, e definiu que combater a pobreza e a desigualdade era compromisso do governo como um todo, e não tarefa de um setor específico. Esse conceito perdurou na primeira fase do Fome Zero, nos primeiros anos do governo Lula, mas a transversalidade das ações nunca aconteceu, o que provocou o pedido de demissão do então assessor especial da Presidência, Frei Betto, para quem o Bolsa Família acabou abafando o Fome Zero e o governo perdeu-se em uma política assistencialista com cunho eleitoreiro. A idéia do Comunidade Solidária era articular as ações do governo com a sociedade civil. Propunha também introduzir na gestão pública "novas formas de gerenciamento de programas sociais, evitando o clientelismo, a centralização, a superposição e fragmentação das ações e a pulverização dos recursos, eliminando a ineficiência, a descontinuidade e o desperdício". Essa rede de proteção social, embora tenha sido enfatizada pelo candidato do PSDB em 2002, José Serra, não era uma bandeira política do partido e não trouxe benefícios eleitorais para o candidato tucano, mesmo que já atingisse cerca de 4 milhões de famílias àquela altura. O único estado em que Serra venceu Lula foi em Alagoas, coincidentemente o estado que tinha mais programas sociais em atividade. Nos últimos tempos, Ruth Cardoso estava dedicada a estudar e fomentar a atuação da sociedade civil na ONG Comunitas. Certa vez participei de um seminário promovido por ela para discutir o papel da sociedade civil e da comunicação de massas na nova sociedade. Ela estava convencida de que a democracia no Brasil vinha se fortalecendo baseada em uma sociedade civil informada, participante e responsável, e que há uma relação intrínseca entre democratização da sociedade e uma nova concepção de desenvolvimento humano, social e sustentável. Interessava a ela essa rede de informações a partir de novas tecnologias, que ajuda a opinião pública a afirmar sua capacidade de deliberação e influência. Ela via uma nova onda crescendo nos últimos anos, a do desenvolvimento endógeno, "de dentro para fora, de baixo para cima, com base nas capacidades das pessoas e nos recursos das comunidades". Por isso, era crítica da CPI das ONGs, sobretudo do título, dizendo que erros eventuais não poderiam desmoralizar esse instrumento de atuação da sociedade, especialmente em países como o nosso, com tantas carências e dificuldades para financiamento de programas sociais. |
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