O Globo |
26/6/2008 |
A participação das Forças Armadas, mais especificamente do Exército, na segurança pública continua suscitando um debate entre os especialistas, embora o episódio do Morro da Providência, no Rio, a tenha distorcido, tanto pelas claras intenções político-eleitorais do projeto em que o Exército se viu envolvido quanto pela incapacidade do governo de sair da mesquinhez de um projeto pessoal para tratar o assunto na sua verdadeira dimensão de interesse nacional. De três especialistas na área ouvidos, dois concordam que a legislação existente define bem o papel das Forças Armadas na manutenção da lei e da ordem, mas há dúvidas sobre em que momento elas podem ser usadas. Um terceiro considera que a legislação não permite a "ação de polícia" por parte das Forças Armadas, sendo compreensível a preocupação do Ministério da Defesa em proteger os militares. Kosmo Ferreira, procurador da República, lembra que o texto constitucional determina que as Forças Armadas "destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem", nos termos do artigo 142. A lei complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, com as alterações introduzidas pela lei complementar 117, disciplina, entre outras matérias, o emprego das Forças Armadas na defesa da "lei e da ordem". Os parágrafos segundo e terceiro de seu artigo 15 têm a seguinte redação, respectivamente: "A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de qualquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal". "Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no artigo 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo chefe do Poder Executivo federal ou estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional". Assim, para Kosmo Ferreira, "o Exército só poderá atuar na segurança pública, executando tarefas atribuídas pela Lei Maior às polícias militares ( artigo 144, § 5º , CR ), se o governador do estado membro atestar a indisponibilidade, inexistência ou insuficiência de sua força policial. Se não, não". O leitor Paulo R. Dias, estudioso do assunto, acha que, embora o que transparece para a opinião pública "é que o Ministério da Defesa não quer participar do combate à violência que assombra a vida dos cidadãos cariocas, tal abordagem não esboça a totalidade dos fatos que envolvem a questão". Para ele, a presença das tropas federais no patrulhamento ostensivo de pontos predeterminados "esbarra em dispositivos constitucionais que tornaram ilegítima a autoridade coercitiva destes organismos de segurança. Militares fora dos aquartelamentos não possuem poder de polícia, a não ser que tenha sido decretada a tão temida - para os governos estaduais - intervenção federal, medida que representa um suicídio político por atestado de incompetência". Segundo ele, "não há falta de vontade política por parte do Ministério da Defesa, mas sim, um interesse na proteção dos militares a ele subordinados". Ele vê "um vácuo criado pelo conflito entre os códigos e os interesses dos políticos estaduais", daí surgindo a idéia de criar e mobilizar uma Força Nacional de Segurança, "cuja simples existência reduz a possibilidade de as Forças Armadas cumprirem um de seus deveres constitucionais, contidos no Art 5º da Constituição Federal de 1988, a Garantia da Lei e da Ordem". Conceder às Forças Armadas o poder de polícia necessário ao cumprimento ideal de missões atinentes à segurança pública não faz parte de possíveis alterações ao texto da Carta Magna, diz Paulo R. Dias, "porque essa questão está envolta por um viés ideológico imerso em fantasmas de mais de vinte anos atrás". Já na definição de Paulo Roberto Mello Cunha Jr., promotor de Justiça há sete anos, formado gestor em Segurança Pública e pós-graduando em Políticas Públicas de Segurança e Justiça Criminal, ambos pela Universidade Federal Fluminense, "uma das maiores falsas polêmicas" é a discussão sobre se o Exército tem ou não "poder de polícia". Para ele, o poder do Estado de "regular, controlar, autorizar ou coibir quaisquer atividades realizadas no seio da comunidade" se aplica tanto à Vigilância Sanitária, quando exerce suas funções, ou a comissários do Juizado de Menores, quando fecham um baile, assim como o Exército, quando age no seu mister de "defesa da Pátria, garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de quaisquer destes, da lei e da ordem" (art. 142 da Constituição), todos exercendo o tal "poder de polícia". Ele lembra que, mesmo no caso de prisão em flagrante, por exemplo, o próprio Código de Processo Penal determina que "qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito" (art. 301 do CPP). "Ainda que não se queira dar uma interpretação extensiva ao conceito de "autoridade policial e seus agentes" é fácil notar que, se qualquer do povo pode prender alguém em flagrante delito e conduzi-lo à delegacia de polícia mais próxima, quanto mais o Exército no desempenho de suas funções constitucionais", comenta o promotor de Justiça Paulo Roberto Mello Cunha Jr. Ele acha que, embora existam na Constituição e na legislação os parâmetros para quando se considere haver necessidade de seu emprego, "nada disso tem sido minimamente cumprido. O que temos assistido constantemente é a omissão flagrante do presidente da República e o uso irresponsável e inconstitucional do Exército em situações inexplicáveis dentro da lógica constitucional-democrática". |
Entrevista:O Estado inteligente
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