"Você não vai ouvir o jogo do Brasil? Pensei que gostasse de futebol", estranhou minha mãe quando contei que estava de saída para a sorveteria enquanto meu meu pai entrava em casa e a seleção da Suécia em campo. Também achei estranho vê-la sentada ao lado do berço da caçula e a um metro do rádio colossal, querendo saber dos dois filhos mais velhos como era mesmo o nome do juiz. Não sabia que ela gostava de futebol.
Aos 8 anos, já me entendia bem melhor com a bola que começara a chutar fazia três e gostava cada vez mais de futebol. Mas também gostava muito de sorvete, e acordei naquele domingo de junho pensando não nos dribles de Garrincha, mas num palito de limão. Não sabia que seriam considerados traidores da pátria todos os brasileiros, incluídos bebês e normalistas, que pensassem em outra coisa além da Copa do Mundo.
"Esse moleque é meio bobo", ouvi meu irmão mais velho resumir a opinião geral enquanto eu abria o portão e um francês identificado pelo locutor como Messiê Guigui apitava o início do jogo em Estocolmo e o começo da caminhada de 15 quadras até a sorveteria.
Só então notei que não havia ninguém na Rua General Glicério. Nem na Marechal Deodoro, fiquei intrigado aos 2 minutos do primeiro tempo. Nem em qualquer outra, espantei-me aos 4, quando cheguei à esquina da Rua do Comércio, a mais importante de Taquaritinga, junto com o gol da Suécia.
Na cidade com quase 10 mil habitantes, o único sinal de vida era o mesmo vozeirão no rádio, vindo de todas as direções, multiplicado pelas janelas que todas as famílias haviam escancarado para que até os jardins, os pomares e algum desavisado testemunhassem, segundo a segundo, a saga incomparável da Seleção.
A grande Seleção que Didi, com a bola na mão, caminhando sem pressa até o centro do campo, procurava tranqüilizar diante da casa do doutor Luizão, bom advogado. A cidade inteira estava ouvindo o rádio, confirmou o berreiro que saudou o empate no terceiro quarteirão. Cruzamento de Garrincha, gol de Vavá.
Igualzinho ao segundo, marcado na varanda de um dentista. Pelé fez o terceiro debaixo da jabuticabeira da minha professora do jardim da infância. O Brasil descia para o vestiário quando cheguei à sorveteria. Quatro homens ocupavam a mesma mesa perto do rádio. Nem me olharam. Resolvi ficar ali durante o intervalo.
No terceiro e último sorvete, sabia que estava sintonizado na Cadeia Verde-Amarela, liderada pela Bandeirantes, e que ouvira durante o primeiro tempo a voz de Pedro Luiz. O segundo seria narrado por Edson Leite, uma garganta um pouco menos ligeira, um pouco mais grave e igualmente soberba.
A taça é nossa, garantiu o gol de bico de Zagallo na entrada do do casarão de um médico e confirmou, três quarteirões abaixo, a serenidade do locutor no segundo da Suécia. Entrei na sala de casa festejando o quinto e a taça. "Esse aí não gosta de futebol", debochou o outro irmão. Revidei com um elogio ao sorvete, a reprodução dos cinco gols, a escalação do Brasil, o sorriso de campeão mundial e o brilho no olhar só concedido a quem, ouvindo o rádio, viu como jogavam os heróis de 1958.
A última lição da professora admirável
"Ruth Cardoso", registrou uma reportagem sobre as primeiras-damas assinada pelo colunista há três anos, "seria a prova definitiva de que milagres civilizatórios ocorrem mesmo nos grotões do planeta. A mulher do ex-presidente Fernando Henrique foi a única que chegou a Brasília com profissão definida, luz própria e opiniões a emitir, com igual sinceridade e discrição. Durante oito anos, sempre dedicada a programas sociais, a luminosidade da antropóloga respeitada em muitos idiomas clareou o coração do poder. E só Ruth não tem saudade do posto que quase todas topariam ocupar, sem queixas, a vida inteira".
Nenhum exagero, comprovou a reação do Brasil à morte, que pareceria prematura ainda que Ruth Cardoso tivesse mais de 100 anos, da mulher que não gostava de ser chamada de primeira-dama. Como o próprio Fernando Henrique, o país chorou a morte de uma singularidade destinada a brilhar com ou sem o sobrenome do marido. Ela poderia ter morrido sem conhecer a mesquinhez da fábrica de dossiês da Casa Civil. O abraço que enlaçou Fernando Henrique e o presidente Lula atesta que o Brasil pode ser menos primitivo, mais respirável, menos boçal. Mais parecido com Ruth Cardoso.
O eterno retorno do irrecuperável
Ciro Gomes não tem jeito. "Fortaleza é um puteiro a céu aberto", reincidiu em recente entrevista a uma TV do Ceará o campeão brasileiro de grosserias eleitorais, agora para deixar mal no retrato a prefeita Luizianne Lins. Se a cidade que administrou há pouco tempo é assim mesmo, deveria pedir ao irmão governador que pense mais em Fortaleza e menos em viagens com a sogra. Se foi mais uma generalização esperta, todas as famílias das demais cidades estão convidadas a tirar as crianças da sala sempre que alguém crescido em Sobral, como Ciro, aparecer na porta.
A voz amiga do corporativismo
Em nota assinada pelo presidente Fernando César Baptista de Mattos, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) manifestou a solidariedade da corporação ao titular da 10ª Vara Cível de São Paulo, que proibiu a publicação pelo Jornal da Tarde de uma reportagem sobre possíveis irregularidades no Conselho Regional de Medicina, e queixou-se da publicação de críticas ao juiz censor. Segundo a nota, o associado agiu assim para "assegurar o direito de ampla defesa das partes". Homem prudente, achou que precisaria de 72 horas para examinar o material com a isenção e a sensatez que faltam aos jornalistas.
Quem não vê essa obviedade, decidiu a Ajufe, coloca em risco o "estado democrático de direito". A entidade mencionada duas vezes no texto, sempre com maiúsculas, não existe sem a plena liberdade de imprensa – "cujos corolários constitucionais", como advertiu a resposta do Estadão, "são a proibição da censura prévia e a vedação de qualquer ato que possa inibir a livre manifestação do pensamento". No caso da reportagem do JT, ou os médicos andaram pecando ou os jornalistas responderão por eventuais equívocos. É aí que entra a Justiça. Se entrar antes, houve censura. O resto é conversa.