meio do caminho
A ação contra as pesquisas com embriões é das raras que, sem retórica, merecem ser chamadas de obscurantistas
Ao apresentar-se no programa Roda Viva, da TV Cultura, em maio de 2004, o então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, vestia um paletó de couro e exibia uma cruz no peito. "Exibia" é bem a palavra. Não era um objeto pequeno e discreto como uma medalhinha. Era uma cruz maior, impossível de não ser notada, sustentada por um cordão que lhe pendia do pescoço e reinando absoluta, sem a concorrência de gravata, sobre a camisa branca. O procurador-geral Fonteles é o mesmo que, um ano depois, argüiria junto ao Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade do artigo 5º da chamada Lei de Biossegurança, proposta pelo Executivo e aprovada pelo Congresso. O artigo em questão permitia, "para fins de pesquisa e terapia", a utilização de células-tronco obtidas "de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados". Fonteles alega que suas razões não têm a ver com religião, e sim com o direito à vida, protegido pela Constituição. Não poderia ser diferente. Nem ao procurador-geral nem ao Supremo cabe imiscuir-se em assuntos religiosos. Mas aquela cruz, hummmm, aquela cruz…
Na quarta-feira passada, o Supremo iniciou o julgamento da questão. Fonteles estava na platéia, agora como ex-procurador-geral. Ele é um católico fervoroso. A cruz que exibia no Roda Viva era uma cruz tau, a que tem forma de T (tau é a letra grega que corresponde ao T) e é de particular devoção dos franciscanos. A nenhuma pessoa, nem mesmo a um funcionário do estado, que é laico, é proibido ser religioso. Também não é proibido ostentar sua religiosidade. Mesmo assim, soa estranho que o procurador-geral, ou seja, o chefe do Ministério Público, portanto o representante supremo de um quase quarto poder da República, se apresente num programa de televisão com o símbolo ostensivo de sua fé exposto no peito. A cruz de Fonteles soava mais fora de lugar do que o xador na cabeça das meninas árabes quando vão à escola, causa de tanta celeuma na Europa. As meninas são simples estudantes. Já o procurador-geral da República é um dos mais decisivos agentes do estado.
Se existe um crucifixo pendurado atrás da mesa da presidência do Supremo, alguém argumentaria, que mal há em o procurador-geral ostentar uma cruz no peito? Há crucifixos também nos plenários da Câmara e do Senado. E há datas religiosas transformadas em feriados por determinação do estado. O.k., são sinais de pendências ainda não resolvidas na separação entre estado e Igreja. Mas os feriados, ainda que tendenciosamente favoreçam apenas a uma religião – a católica –, podem ser explicados por uma tradição que se perde no tempo. Hoje figuram no calendário com tanta naturalidade quanto as estações do ano. Os crucifixos no Supremo e no Congresso, embora também fora de lugar, pelo menos estão ali quietos, imóveis, e até podem passar por simples objetos de decoração. Já a cruz no peito do procurador-geral da República é um símbolo pulsante, vivo e eloqüente.
A ação de Fonteles contra as pesquisas com embriões é das raras que merecem de pleno direito, sem concessão à retórica, o qualificativo de obscurantistas. É contra o progresso, contra a ciência, contra a expectativa de cura para dezenas de doenças hoje incuráveis e a favor de algo tão absurdo quanto inexeqüível: acreditar que o embrião congelado num vidrinho, descartado como inviável ou abandonado pelo casal que o produziu, deve ter seu direito à vida garantido pelo estado. Como fazê-lo?, perguntou, no julgamento da semana passada, o advogado-geral da União, José Antonio Toffoli. Obrigando a mulher que doou o óvulo a acolhê-lo no útero e gestá-lo? As clínicas de reprodução assistida têm estocadas centenas de embriões. Muitos pertencem ao mesmo casal, pois a regra é colher vários exemplares para escolher o melhor. Nesse caso, para garantir a vida de seus múltiplos embriões, só submetendo a mãe a tão sucessivas gestações que acabariam por condená-la a um permanente estado de gravidez.
O julgamento no Supremo foi suspenso por um pedido de vistas do ministro Carlos Alberto Direito. O assunto, segundo ele, é complexo e exige reflexão mais profunda. Direito é membro da União dos Juristas Católicos. Hummmm… O relator, Carlos Ayres Britto, havia votado a favor da lei. A ministra Ellen Gracie, presidente do Supremo, secundou-o com a elegância e a correção de costume. Primeiro, adiantou seu voto, garantindo um placar provisório de 2 a 0 contra o obscurantismo. Depois, cobrou do ministro Direito uma rápida devolução do processo ao julgamento. "Essa ação entrou no Supremo em 30 de maio de 2005", argumentou. "Já são passados três anos." Quando Direito se defendeu com a alegação de que o processo não suspendia a vigência da lei, Ellen Gracie contra-atacou: "Se as pesquisas não foram paralisadas, pelo menos sofreram sensível desestímulo". Está na moda falar de comportamento "republicano". Ellen Gracie encarnava naquele momento os valores da República contra os dogmas da sacristia.