A série reconfigurou o genoma do filme de
ação e suspense e melhorou até James Bond.
Mas a mutação já começa a perder sua força
Isabela Boscov
À semelhança do que acontece na natureza, no cinema americano as mutações vantajosas tendem a ser transmitidas a gerações posteriores. Graças à lei hollywoodiana da seleção e evolução é que a narrativa múltipla de Cidadão Kane, surpreendente em 1941, foi assimilada a ponto de hoje mal se perceber seu caráter inovador. É por causa dela também que o gene cínico da produção independente virou padrão, ou que produtos de massa, como a série Harry Potter, se revigoram quando neles se introduzem as características diversas de diretores como o mexicano Alfonso Cuarón. Mas, da mesma forma que entre os seres vivos, às vezes uma mutação que é benéfica num determinado ambiente se mostra ineficaz ou nociva em outro – algo que Ponto de Vista (Vantage Point, Estados Unidos, 2008), que estréia nesta sexta-feira no país, ilustra muito bem.
Ponto de Vista é um experimento tresloucado de hibridização. Seu evento central, um atentado contra o presidente americano (William Hurt) na cidade espanhola de Salamanca, é visto e revisto pela perspectiva de oito personagens, entre os quais um agente do serviço secreto (Dennis Quaid), um turista (Forest Whitaker) e três terroristas. Aí ele já expressa, com força total, o DNA da série 24 Horas, além de traços ultradiluídos de Rashomon – o clássico de Akira Kurosawa em que uma mesma história mudava segundo quem a contava. Há muito de Crash nessa mistura também, nos dramas "humanos" dos protagonistas. O que Ponto de Vista realmente gostaria de ser, porém, é um clone da série Bourne.
A trilogia estrelada por Matt Damon representou a mais inesperada e influente transformação de um gênero na última década. Em especial a partir do segundo episódio, sob a direção do inglês Paul Greengrass, ela subverteu todos os cânones do filme de suspense e espionagem. Em vez da estilização habitual, Bourne propôs um estilo documental e incessante de ação, talhado à perfeição para um protagonista que tem no instinto a arma de sobrevivência. Quando o primeiro filme foi lançado, previa-se que ele seria rejeitado. Em vez disso, a trilogia totalizou quase 1 bilhão de dólares na bilheteria e estabeleceu um novo modelo para esse tipo de filme. O primeiro a segui-lo foi James Bond, que, personificado por Daniel Craig, se despiu daquela suavidade que, décadas antes, ele próprio instituíra. Bourne afetou de maneira positiva também Duro de Matar 4.0, na forma de um aval para que o policial proletário de Bruce Willis não se desnaturasse em sua volta à ativa. Aquilo que nesses filmes sobrevivera como linguagem, entretanto, em Ponto de Vista desvirtuou-se em mera fórmula – exemplificada pela perseguição de carros muito bem editada, mas carente de sentido dramático, que é o ponto alto do filme. O diretor britânico Pete Travis foi discípulo de Paul Greengrass, que produziu para ele o ótimo Omagh, sobre um atentado na cidade irlandesa homônima. Nesse seu experimento, porém, os genes que seu mestre lhe transmitiu não se expressaram em avanço do gênero – só em algo tão desimportante quanto ter olhos azuis ou castanhos.
DA INOVAÇÃO À BANALIZAÇÃO
A REVOLUÇÃO Trilogia Bourne O protagonista impessoal, a ação visceral e o estilo documental da série romperam com todos os cânones do filme de espionagem |
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A ASSIMILAÇÃO Cassino Royale Por influência da série, James Bond perdeu o excesso de finesse e ganhou vigor, resultando num dos melhores filmes de toda a franquia
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A VULGARIZAÇÃO
Ponto de Vista
A linguagem desenvolvida pelos diretores Doug Liman e Paul Greengrass para Bourne está agora a serviço da ação, não do conteúdo. Virou mera técnica