O Globo |
14/3/2008 |
Para entender a maneira de pensar e agir da secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice, que se prepara para retornar ao seu posto de professora de ciência política na Universidade Stanford, na Califórnia, quando terminar o governo Bush, talvez seja necessário considerar uma boa metáfora: para ela, depois dos ataques terroristas aos Estados Unidos, todos os dias seriam 11 de setembro de 2001. Isto é, ela acordaria decidida a impedir que se repitam aqueles ataques. Rice tem não apenas a visão da estadista, mas também a da historiadora, e defende a democracia mesmo que imposta pela guerra, como no Iraque e no Afeganistão. É capaz de contrapor com toda ênfase a ajuda humanitária dos Estados Unidos na África às críticas à guerra. E por isso é capaz de fazer um diagnóstico prospectivo que lhe dá a certeza de que, a longo prazo, a versão da história do dia-a-dia, francamente desfavorável ao governo Bush ao qual serve, será substituída por uma visão de um mundo mais democrático criado a partir de ações concretas que estão sendo tomadas hoje. Esse sentimento de urgência no combate ao terrorismo, que está no cerne da decisão de Bush de vetar uma lei que proibia a CIA de usar simulação de afogamentos e outras técnicas de interrogatório consideradas tortura, é o mesmo que leva Condoleezza Rice a dar mais importância ao fato de os territórios do Equador ou da Venezuela serem usados para facilitar a ação das Farc do que à reação da Colômbia invadindo o território equatoriano para atacar um grupo de narcoguerrilheiros. Ela não se preocupa com a crítica de que os EUA estariam por trás do ataque colombiano, transferindo para a América do Sul o conceito de "guerra preventiva" utilizado no Oriente Médio, mas insiste na necessidade de que prevaleça na América do Sul o conceito explicitado em uma resolução da ONU que proíbe que um país permita que usem seu território para atacar outros. A ação mais concreta que se pode tirar das conversas que Condoleezza Rice manteve com autoridades brasileiras sobre a crise entre a Colômbia e o Equador é a sugestão de se criar uma comissão regional para estudar em diversas partes do mundo como os países estão lidando com a questão delicada de crimes transfronteiriços. Mesmo para países como o Brasil, que não consideram as Farc uma organização terrorista, aprender como agir para não permitir que seu território seja usado como base de ataque a outro país, seja por terroristas ou por traficantes de drogas, pode ser um bom começo. A Indonésia, na Ásia, tem problemas para controlar o terrorismo em suas fronteiras por ser um grande arquipélago. A colaboração entre a França e a Espanha para evitar os ataques do ETA, e o Paquistão também enfrenta problemas em suas fronteiras, são casos a serem estudados. Rice não se cansou de elogiar publicamente a atuação do Brasil na superação da crise, e está convicta de que temos papel importante para estabelecer na região normas de segurança e conduta política que impeçam que as Farc se utilizem de um outro país para atacar a Colômbia novamente. Os Estados Unidos trabalham com a certeza de que a democracia prevalecerá na região, mesmo que haja algum desvio no caminho por ações personalistas como as de Hugo Chávez. Porém, quem tenha querido tirar de Condoleezza Rice críticas diretas a Chávez, provavelmente não terá tido êxito. Ela parece estar decidida a não dar a ele a condição de dizer que os Estados Unidos são um empecilho à democracia na América do Sul. No centro decisório do governo Bush desde o início, Rice entende as dificuldades de liderança que o Brasil tem num momento complexo da vida política da América Latina, e não foi à toa que ela, assim como já havia feito o próprio presidente Bush na visita anterior, não incluiu Buenos Aires no seu périplo sul-americano, indo apenas ao Brasil e ao Chile, também não por acaso dois países governados por políticos de esquerda. Mostra assim que não tem preconceitos ideológicos e distingue os dois líderes naturais da região sem precisar formalizar essa definição e, mais que isso, sem que os dois países necessitem do aval americano para exercerem essa liderança, que lhes compete naturalmente. Terá pesado na decisão de não parar na Argentina a sensação do governo dos Estados Unidos de que um sentimento antiamericano, latente em toda a região, é incentivado pela gestão dos Kirchner como instrumento político. Agravado pelo fato de que em 2001 o governo Bush trabalhou ativamente junto ao FMI para não deixar a crise econômica da Argentina se tornar irreversível, e um dos canais mais usados foi Condoleezza Rice, naquela época conselheira para Assuntos de Segurança Nacional do presidente Bush. Esse sentimento antiamericano latente pode ser explicado pela política norte-americana até finais do século XX, tratando a região como um satélite, alguns diriam até mesmo o quintal, dos Estados Unidos. A democratização da região nos últimos anos, com exceção de Cuba, e o reconhecimento de que não é mais possível impor dogmas econômicos que não levem em conta avanços nas políticas sociais da região, tendem a escrever uma nova história no relacionamento dos Estados Unidos com a América do Sul, e a secretária de Estado Condoleezza Rice quer fazer parte dela. Difícil ver a história contemporânea pelas lentes otimistas de Rice, mas ela transmite a idéia de que está confortável com seu papel. Tão confortável que não se incomoda de afirmar que não aceitaria ser a vice do republicano John McCain, acreditando que na democracia é preciso haver um rodízio de pessoas para revitalizar o sistema. Mudança é sempre bom, diz ela, repetindo sem querer o lema do democrata Barack Obama. |
Entrevista:O Estado inteligente
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