O Globo |
7/3/2008 |
Um efeito paralelo para o Brasil da crise político-militar que ainda domina o cenário sul-americano é a aproximação com a França e o distanciamento dos Estados Unidos no que se refere à concepção de defesa militar do continente. O governo brasileiro, por razões ideológicas, mas também conceituais, posiciona-se ao lado da França a favor da negociação com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) para a libertação dos reféns, e contra a política de "ataques preventivos". A França, por razões mais sentimentais do que ideológicas, aceita qualquer tipo de intermediação, mesmo aquelas condenadas pelos tratados internacionais, para libertar a ex-senadora Ingrid Bettancourt, a tal ponto de o conservador Nicolas Sarkozy insinuar que a França poderia considerar as Farc um grupo insurgente, e não terrorista, caso se dispusessem a liberá-la. Sarkozy, que começou seu governo declarando apoio aos Estados Unidos na guerra contra o terrorismo, mudando a posição francesa de oposição à política de Bush, não resistiu aos apelos sentimentais provocados no país pelos relatos da situação de Ingrid Bettancourt na selva e, em vez de assumir o combate aos narcoguerrilheiros ao lado da Colômbia e dos Estados Unidos, como seria sua posição natural, busca desesperadamente uma negociação para a libertação da refém. O governo brasileiro está convencido de que houve interferência americana na ação colombiana de invadir o território do Equador para atacar o grupo guerrilheiro que lá estava, sabe-se agora que negociando com o governo francês, sob os auspícios de Chávez e Correa, a libertação de Bettancourt. A posição dura contra a Colômbia, e a prioridade para a formação de um Conselho Sul-Americano de Defesa, fazem parte dessa resposta a uma possível ingerência dos Estados Unidos na região. Em nenhum momento os países envolvidos no conflito, nem mesmo a Venezuela de Chávez, acusaram formalmente os Estados Unidos, mas há um convencimento de que sem o apoio americano o governo Uribe não teria condições tecnológicas de rastrear a localização dos guerrilheiros nem de realizar o ataque, além do suporte político. A aproximação com a França já estava traçada nas negociações de uma "aliança estratégica" que será coroada com nada menos que quatro encontros de Lula com Sarkozy este ano. Dentro desse conceito, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, esteve na França recentemente, e um ponto decisivo para negócios na área de armamentos é a transferência de tecnologia, que tem na França maior receptividade do que nos Estados Unidos. O embaixador americano Clifford Sobel esteve com o Jobim depois que este regressou de uma viagem à França e à Rússia, e garantiu que a transferência de tecnologia pode ser negociada com os fabricantes americanos de helicópteros, submarinos e aviões, e o interesse especial do Brasil é a transferência de tecnologia de submarinos nucleares. Jobim visitará nos próximos dias os Estados Unidos para conversar sobre temas sensíveis como esse e a criação do Conselho Sul-Americano de Defesa. E está prevista uma visita da secretária de Estado Condoleezza Rice neste mês. O governo brasileiro não acredita, no entanto, que consiga com os americanos contratos mais vantajosos do que com a França, não em termos de preço, mas pelo acesso à tecnologia embutida nos equipamentos, especialmente a nuclear. Sempre que se fala nisso lembram-se no governo brasileiro as pressões políticas, especialmente dos Estados Unidos, que o país volta e meia enfrenta com suas instalações de enriquecimento de urânio no complexo semi-industrial de Resende que, em oito anos, deve produzir o necessário para o funcionamento das duas usinas de Angra e da terceira que será construída. Poucos países dominam a técnica de enriquecer urânio - EUA, Rússia, China, França, Alemanha, Holanda e Inglaterra, e o Brasil está entre eles. Uma técnica desenvolvida pela Marinha chamada "levitação magnética", em uma centrífuga feita com tecnologia nacional, que tem velocidade e produtividade maiores, provoca a "curiosidade" da comunidade científica internacional, e interesses comerciais de competidores, mais especificamente dos Estados Unidos. Quanto à coordenação das políticas de defesa do continente, o ministro Nelson Jobim já esteve discutindo o assunto no Chile, na Argentina, na Colômbia e no Equador, mas não com a Venezuela de Chávez. Uma visita estava programada por esses dias, mas foi cancelada devido aos acontecimentos. O Conselho Sul-Americano de Defesa imaginado pelo Brasil não tem, pelo menos inicialmente, o caráter de união de forças militares da região proposta por Hugo Chávez. Ele seria responsável pela formulação de uma estratégia conjunta na área, e a busca de que os países sul-americanos tenham posições comuns nos fóruns internacionais, além de resolver eventuais questões de defesa, como agora. Também há a intenção de estimular a criação de uma indústria privada de defesa sul-americana, com o objetivo de diminuir progressivamente a dependência externa em produtos estratégicos de defesa, desenvolvendo-os e produzindo-os na região. O governo brasileiro já tinha dado os primeiros passos num projeto ambicioso de integração da indústria de defesa com a Argentina, a África do Sul e a Índia, na época em que o ministro da Defesa era o embaixador José Viegas. A tese por trás dessa estratégia, que será retomada agora através da América do Sul, é fazer parte de um "núcleo de poder militar" no Hemisfério Sul, para se contrapor a Estados Unidos e União Européia. Rússia e China poderiam também se juntar a esse grupo. |
Entrevista:O Estado inteligente
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