Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 08, 2008

J. R. Guzzo


O nariz do Supremo

"A dificuldade, no sonho de Lula, é que o Judiciário tem,
justamente, de meter o nariz nas "coisas" dos outros – aliás,
isso é tudo o que faz na vida, julgando desde ações de
despejo até a legalidade das pesquisas com células-tronco"

O Supremo Tribunal Federal meteu o nariz na questão das células-tronco. Ainda bem. O Congresso aprovou, em 2005, a lei que permite a realização de pesquisas com embriões humanos, por entender que isso ajudará a salvar vidas. Um ex-procurador da República contestou a decisão, por entender que a lei aprovada violava a Constituição. Na semana passada os ministros da Corte Superior começaram a julgar a legalidade da decisão do Congresso. Aparentemente, a maioria deles entende que, entre preservar a vida dos embriões, que pode ou não existir, e vidas que existem com toda a certeza – as dos pacientes que precisam das células-tronco para ter alguma chance de continuar vivos –, é melhor optar pela segunda alternativa. Caso o Supremo confirme essa posição e a lei entre em vigor, o Brasil de amanhã será melhor que o Brasil de hoje. Até agora, a ciência brasileira estava impedida de trabalhar numa área vital para o progresso. A partir do julgamento final do STF, poderá não estar mais. É uma mudança e tanto.

A decisão vem num momento especial, justamente na hora em que o ministro Marco Aurélio Mello, presidente do Tribunal Superior Eleitoral e membro do STF, acaba de levar uma perfeita descompostura em público do presidente da República. No caso, o ministro manifestou-se, antecipadamente, sobre um assunto que deve ser apreciado pelo Judiciário – se o governo tem ou não direito de criar, num ano eleitoral como 2008, programas de distribuição de dinheiro aos pobres. Não se sabe qual seria a reação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se o ministro tivesse dito que os programas lhe pareciam legais. Como disse exatamente o contrário, foi tratado com um desses discursos em que Lula libera sua porção rottweiler – em geral, na segurança de ambientes fechados, com auditório a favor e a certeza de receber tanto mais aplausos quanto mais bravo parece. Normalmente, Mello não deveria falar nem contra nem a favor de algo que os tribunais ainda vão julgar. Juízes, segundo um antigo e eficaz entendimento de seu trabalho, só se manifestam sobre uma questão na hora de dar a sentença; "falam nos autos". O que se vai fazer? O ministro acha que é sua obrigação falar fora dos autos – por razões "pedagógicas", diz ele. É pouco provável que mude.

O ministro Marco Aurélio Mello fala demais? Fala. Muitos de seus colegas nos tribunais superiores falam demais? Falam. Falam sobre questões que têm ou não têm a ver com o seu trabalho. Dizem o que é bom ou ruim para o Brasil, o que é certo ou errado para os cidadãos e, freqüentemente, o que é "melhor" para um e outros. Dão entrevistas, aparecem na televisão e mantêm assessorias de imprensa. Alguns já se tornaram celebridades. Se não prestarem atenção, podem acabar um dia desses metidos numa camiseta de cervejaria assistindo a desfile de escola de samba. Mas o ministro Mello, no episódio em questão, acabou saindo com a razão que não tinha. Sempre se pode contar com a ajuda do presidente Lula nessas horas: ele passa a operar no seu modo extremo e, aí, fica na posição de agressor. Segundo Lula, o Judiciário não tinha nada de "meter o nariz" em assuntos do Executivo. Desafiou o ministro a renunciar ao STF e ao TSE, eleger-se para um cargo político e aí falar "as bobagens que bem entender". "Como seria bom", disse o presidente, se o Executivo, o Legislativo e o Judiciário só se metessem nas "coisas deles".

A dificuldade, no sonho de Lula, é que o Judiciário tem, justamente, de meter o nariz nas "coisas" dos outros – aliás, isso é tudo o que faz na vida, julgando desde ações de despejo até a legalidade das pesquisas com células-tronco. O que seriam, na visão de Lula, "os assuntos do Judiciário"? Uma disputa entre empregador e empregado na justiça trabalhista, por exemplo, não seria uma questão apenas entre eles? Porque o Judiciário teria de meter o nariz aí? No caso do programa Territórios da Cidadania, que pretende fazer doações de pequenas quantias aos pobres das áreas rurais, há dúvidas sobre se isso pode ou não pode ser feito em 2008. O governo acha que pode. A oposição acha que não pode. É a Justiça, e só ela, que tem de decidir como é que fica. Qualquer que seja, o julgamento vai desagradar a uma das partes; na Justiça, como se sabe, o inferno são as decisões em favor dos outros.

A polêmica entre Lula e o ministro Mello foi a pique diante do debate no STF, muito mais relevante para todos, sobre a lei das células-tronco. O que se pode perceber, mais uma vez, é que o presidente da República tem a tendência de ficar agitado sempre que o Judiciário, o Legislativo, a imprensa ou seja lá quem o incomode não se comporta como o PT. Ali ele é rei e sua palavra é a lei – todo mundo obedece e ainda lhe diz "muito obrigado". É natural, pois quase todos os que subiram na vida dentro do PT não são nada sem Lula – devem a ele os cargos, o carro com chofer e o cartão corporativo. Mas o resto do país não tem nada a ver com isso; ninguém, aí, é obrigado a se comportar como o presidente acha que deve. Nem o ministro Mello, fora ou dentro dos autos.


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