Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 15, 2008

A herança maldita de ACM

Ameaças, chantagens, intrigas e até invasão
autorizada pela Justiça marcam a disputa da
família de Antonio Carlos Magalhães por patrimônio
avaliado em 345 milhões e esferas de influência na Bahia


Otávio Cabral


Vivas
Fernando Vivas
O senador ACM, que morreu em julho do ano passado, e seu túmulo, em Salvador: filhos brigam por controle de empresas e obras de arte


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Quadro: A genealogia da disputa pela herança de ACM

Fino observador e implacável executor das leis que movem o poder e o dinheiro, o ex-senador Antonio Carlos Magalhães seria o primeiro a saber: quanto mais de ambos, maior a probabilidade de disputas. Morto no ano passado, depois de uma vida em que, à exceção da Presidência da República, ocupou praticamente todos os postos que contam (inclusive os que não têm designação), ACM deixou uma herança política em refluxo e um patrimônio ainda saudável, avaliado em 345 milhões de reais, constituído por emissoras de rádio e televisão, jornal, gráfica, imóveis, ações e dinheiro. Na semana passada, uma cena inimaginável na época áurea do leão baiano revelou a existência de uma briga feroz entre os filhos e netos pela herança do ex-senador. Amparados por uma decisão judicial, policiais armados arrombaram o apartamento da viúva de ACM, Arlette Magalhães, de 78 anos, à procura de quadros, esculturas e objetos valiosos supostamente desaparecidos após a sua morte. A ação foi autorizada pela Justiça depois que Tereza Magalhães Mata Pires, filha do ex-senador, acusou o irmão, ACM Júnior, de esconder dos inventariantes a parte de maior valor do acervo que o pai mantinha em casa. A briga pela herança tem todos os elementos dos litígios familiares que entram para a história: ódios antigos, ameaças, chantagens, intrigas, espionagem e, inevitavelmente, a eclosão de segredos íntimos guardados por décadas. Ao fundo, o panorama sempre venenoso das disputas pelo poder na Bahia.

ACM não deixou testamento. Pela lei, seus bens devem ser divididos entre a viúva, Arlette, e os filhos, ACM Júnior e Tereza Magalhães; mais os netos Luís Eduardo Filho, Carolina Magalhães e Paula Magalhães, cujo pai, o deputado Luís Eduardo Magalhães, morreu em 1998. A jóia da herança é a TV Bahia, emissora que transmite a programação da Rede Globo no estado. Avaliado em 300 milhões de reais, o canal sempre foi um instrumento importante da família para conquistar e manter sua influência na região. Alcança todos os municípios baianos e tem uma média de 70% de audiência. Não surpreendentemente, está no centro da disputa. Logo depois da morte do ex-senador, a filha Tereza, que é casada com o empresário Cesar Mata Pires, dono da construtora OAS, uma das maiores do país, tentou promover uma aliança estratégica com o irmão e os sobrinhos para deixar o controle da TV nas mãos do marido. O interesse de Mata Pires pela emissora é antigo e, segundo os adversários familiares, ele tem como meta usar o canal para multiplicar seus negócios. O empreiteiro procurou ACM Júnior, que ocupou a vaga do pai no Senado, e o deputado ACM Neto para propor um acordo. Ofereceu a Neto uma mesada de 100 000 reais, um avião e a garantia de financiamento de todas as campanhas, "da borracha ao marketing", para que lhe fosse passado o controle da TV. Júnior receberia o triplo de todos os seus rendimentos provenientes da emissora. Pai e filho recusaram a proposta, e a guerra começou.


Marcio Lima
Aqui está o motivo: a TV Bahia é o alvo principal do litígio entre os filhos do ex-senador

"Cesar quer poder, para isso quer controlar a TV Bahia. Como não conseguiu, apela para baixarias, como a invasão da casa da minha mãe. O absurdo é que minha irmã o apóia e não respeita a mãe nem a memória do nosso pai", diz o senador ACM Júnior, o porta-voz da família. As relações de Mata Pires com o restante da família, que nunca foram muito boas, chegaram ao ponto de incandescência quando ele avisou que iria retaliar para mostrar que todos têm muito a perder com a disputa. Há uma semana, o empreiteiro transferiu seu escritório e a residência de São Paulo para Salvador. Simultaneamente, a Justiça determinou a invasão do apartamento da viúva do ex-senador. Segundo os Magalhães, Mata Pires também contratou uma empresa de detetives para grampear telefones e vasculhar a vida da família. "Por isso, ninguém aqui mais fala assuntos sérios ao telefone", conta um dos envolvidos. Também existem rumores de que até porteiros do edifício onde mora a viúva foram subornados para avisar sobre qualquer movimentação considerada suspeita. Os Magalhães também se mostram indignados com os boatos espalhados, segundo eles pelo empreiteiro, de que o ex-senador teve um filho fora do casamento. O homem, hoje com 40 anos, teria sido reconhecido por ACM no leito de morte e, pela versão difundida, ganhou de presente um apartamento no bairro do Morumbi, em São Paulo. Agora, estaria interessado em entrar na Justiça para pedir a exumação do corpo do ex-senador, confirmar a paternidade e reivindicar sua parte na herança. "Só três pessoas podem saber se isso é verdade: meu pai, que já morreu, esse rapaz e a mãe dele", desconversa ACM Júnior, deixando claro o desconforto com a história que ronda a família há muitos anos.

Porta adentro: a disputa pelos bens de ACM levou o casal Tereza e Cesar Mata Pires (no alto, à esq.) a obter na Justiça o arrombamento do apartamento da viúva do ex-senador, acirrando o conflito com ACM Neto (no alto, à dir.)

A guerrilha dos Magalhães é travada também pelas páginas dos jornais de Salvador. Depois da invasão judicial do apartamento, ACM Júnior utilizou a rede de comunicação da família para denunciar a "brutal e violenta violação de privacidade e propriedade" a que eles foram submetidos. Cesar Mata Pires retrucou com uma nota no jornal A Tarde, acusando os Magalhães de esconderem seus bens para prejudicar Tereza. A tréplica foi dada na sexta-feira, no Correio da Bahia, jornal da família de ACM: "Como eles não conseguiram controlar a TV, agora usam de baixarias para tumultuar o processo", diz uma nota publicada no jornal. Mata Pires confidenciou que a perícia foi requisitada porque Tereza soube que uma escultura de Victor Brecheret e um valioso quadro de Candido Portinari haviam sido retirados do apartamento antes da conclusão do inventário. ACM deixou uma das maiores coleções privadas do país. Há pinturas de Di Cavalcanti, esculturas, peças sacras do período barroco – inclusive um Aleijadinho – e uma enorme coleção de prataria, com objetos de diversas partes do mundo. O acervo é avaliado em 10 milhões de reais. "Foi uma operação normal em um processo judicial por herança. Meu cliente quer apenas catalogar o que há na casa", afirma o advogado André Barachisio Lisboa, que representa os Mata Pires.


Dida Sampaio/AE
Rejane Carneiro/AE
Tempero baiano: além da disputa pela herança que separou a família, os Magalhães têm perdido poder e influência para adversários históricos como o governador petista Jaques Wagner e o peemedebista Geddel Vieira Lima

Para apimentar ainda mais o caso, a família Magalhães acusa Cesar Mata Pires de ter feito uma aliança com os petistas da Bahia para prejudicá-la. Na última eleição, a OAS foi uma das maiores financiadoras das campanhas eleitorais do PT, doando oficialmente mais de 2 milhões de reais. Agora, seguindo orientações do empreiteiro, a empresa estaria investindo na pré-candidatura do petista Nelson Pellegrino – um dos principais rivais políticos de ACM Neto – à prefeitura de Salvador. Os ânimos ferveram quando os Magalhães descobriram que a autorização para abrir o apartamento da viúva havia sido assinada pela juíza Fabiana Oliveira Pellegrino, mulher do deputado Nelson Pellegrino. "O mínimo que ela poderia ter feito, se seguisse uma linha ética, era se julgar impedida de atuar nesse caso por causa de suas ligações políticas e familiares. Afinal, seu marido é um dos principais adversários do nosso grupo", reclama ACM Júnior, que pediu ao Tribunal de Justiça da Bahia que a juíza seja retirada do caso. Pellegrino nega qualquer influência. "Fabiana é uma mulher séria e competente. Nem se eu quisesse me meter no seu trabalho, ela me daria ouvidos", afirma o deputado. A juíza também repudiou os comentários. "Eles não se conformam por não controlarem mais a Justiça, como faziam quando o velho mandava na Bahia", disse Mata Pires a um interlocutor.

Em conversas reservadas, o empreiteiro ainda levanta suspeitas sobre a origem do patrimônio da família. ACM fez política durante toda a vida e ainda assim conseguiu construir uma considerável fortuna. "A concessão e o fato de ser a única retransmissora da Globo valorizaram demais a nossa empresa e ajudaram muito nos negócios", rebate ACM Júnior. Desde a morte de Antonio Carlos Magalhães, em julho do ano passado, o clã tem visto seus espaços de poder na Bahia serem ocupados por petistas ligados ao governador Jaques Wagner e ao peemedebista Geddel Vieira Lima, um desafeto histórico. Na política, o carlismo está se desintegrando em velocidade acelerada. A disputa pela herança do ex-senador – ainda nos estágios iniciais – destruiu a unidade familiar, que resistiu a tantos outros golpes. O tradicional almoço de domingo, do qual ACM nunca abria mão, tornou-se uma total impossibilidade. Afinal, o "Estranho" não tolera a "Ingrata", que não fala mais com o "Anão Arrogante", que detesta o "Golpista", que quer ficar ainda mais rico com a empresa "Obras Arranjadas pelo Sogro". É assim que os membros da família Magalhães se tratam hoje em dia. Isso para citar apenas os apelidos publicáveis.

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Fotos Jose Patricio/AE,Cadu Gomes/CB, Divulgação, Ag A Tarde, Ana Arujo, Haroldo Abrantes/A Tarde, Mario Leite, E Xando/A Tarde
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