Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 09, 2008

Gaudêncio Torquato Encher o prato e comer pelas bordas

Que há alguma coisa no ar do País fora os aviões de carreira e os tucanos da Força Aérea, há muito já sabemos. Os sinais também indicam que não se trata de extraterrestres tentando abduzir o presidente Luiz Inácio para averiguar por que um humanóide resiste tanto às intempéries brasileiras, mesmo as que destroem células vitais do organismo político, como as irrupções de natureza ética que assolam o corpo governamental. O que tem chamado a atenção, nas últimas semanas, é o conjunto de movimentos ensaiados pelo presidente da República, alguns apontando para a visão estratégica que o torna um disciplinado aluno de Maquiavel, outros fechando o feixe de armas táticas, necessárias para vencer obstáculos, abrir rotas e alinhar exércitos. Nos horizontes estratégicos, desponta o ciclo pós-Lula, dentro do qual o presidente insere os primeiros perfis para sucedê-lo. Nas sombras táticas, as balas atiradas para confundir e dispersar adversários saem do cartucho pesado da reforma tributária com recheio de chumbo trabalhista, no caso, as Convenções 151 e 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).


Procuremos desvendar o arsenal. Está mais do que evidente que Lula começou a burilar o amanhã. Confirma-se, a cada dia, a preferência que tem pela poderosa chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, pessoa de absoluta confiança, como candidata à sua sucessão. A ministra discursou em palanque, em Aracaju, semana passada, obedecendo ao figurino de expurgar estatísticas e verberar o “populês” lulista. A idéia em curso é a de que o presidente correrá o País com a ex-guerrilheira a tiracolo para ver se ela emplaca e, ainda, para avaliar o potencial de transferência de votos. Na rebarba das conversas, a confissão de que poderia até se abrigar em um mandato de senador por Pernambuco, terra natal, onde teria condições de capturar cerca de 90% dos votos. Caso o teste de adesão à Dilma dê negativo, Lula tem a alternativa de pinçar um nome do PT ou da base aliada - Patrus Ananias, Ciro Gomes, Sérgio Cabral - ou mesmo o tucano amigo, Aécio Neves, a partir do ingresso deste na seara peemedebista. O presidente sabe que 2010 será um ano especial para Minas Gerais. Na esteira das comemorações do centenário de Tancredo, sob o sorriso de Kubitschek e o recorrente discurso de que os mineiros - o segundo colégio eleitoral do País - precisam resgatar a Presidência perdida com a morte de seu avô, em 21 de abril de 1985, Aécio poderia empolgar a população. O jovem governador, contrário à reeleição, abriria espaço para o lulismo voltar em 2014.

Nomes à parte, retornemos às manobras de Lula. Seja qual for o candidato, o cenário estará pronto para acolher o candidato situacionista. Os valiosos e monumentais arabescos terão alta visibilidade. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), mais adiante, multiplicará obras por todos os espaços. Contingentes das margens sociais estarão sob o abrigo das bolsas que continuarão a despejar a mesada de cada família, e engordadas com os bilhões do Programa Territórios da Cidadania, voltado para irrigar a área rural. Depois de fechar as porteiras das margens, o estilo providencial do mandatário cuida de ajustar o apito dos condutores dos rebanhos. Gado sem aboio do vaqueiro se dispersa. Vale lembrar a imagem de John Stuart Mill: os governantes preferem súditos dóceis ou indiferentes, que podem ser “transformados num bando de ovelhas dedicadas tão-somente a pastar capim uma ao lado da outra”. Os vaqueiros de Lula serão as Centrais Sindicais e seus respectivos sindicatos, a miríade de organizações não-governamentais e os movimentos étnico-raciais.

Após promover o grande acordo e esfriar a competição entre as Centrais, com sua legalização, o presidente amplia o espaço do sindicalismo com o pedido de ratificação pelo Congresso das Convenções 151 e 158. A primeira diz respeito à negociação coletiva no setor público e a segunda proíbe as demissões imotivadas na iniciativa privada. É evidente que os servidores públicos têm direito à negociação coletiva, mas a questão, hoje, transborda para o campo da luta ideológica, deixando antever um Estado partidarizado, repartido entre interesses de grupos e castas. O conceito de serviço público essencial e o direito de greve, por exemplo, devem integrar essa discussão. A Convenção 158, por seu lado, além de tornar letra morta a legislação trabalhista que permite a dispensa injustificada, desestimulará o emprego em vez de dar mais garantias aos empregados, já que no Brasil há excesso de encargos trabalhistas. Países desenvolvidos que a ratificaram, entre os quais Espanha, Finlândia, França, Portugal e Suécia, tiveram de criar novas formas de contrato de trabalho para compensar as restrições da Convenção.

Ademais, por que, até hoje, o Brasil não ratificou a Convenção 87, que estabelece o direito de trabalhadores e empregadores de criarem ou se filiarem a entidades que considerem “convenientes, sem prévia autorização”? Hoje, o Estado intervém fortemente na organização sindical, dizendo como e quando os trabalhadores podem se sindicalizar. Por que o governo não tem interesse em ratificar a Convenção 181, que trata das agências de emprego privadas? Ou seja, algumas Convenções da OIT prestam e outras, não. O governo, na verdade, quer afinar a orquestra. Lula contará com exércitos sindicais e suas inúmeras divisões para expandir o barulho das Convenções da OIT no Congresso. Para aumentar o bumbo, ele ainda conta com a balbúrdia da reforma tributária. Eis o mistério lulista. Enquanto as atenções se voltam para a confusão arrumada na esfera parlamentar, Lula continuará a reinar absoluto. Convenhamos, é muito bode para pouca sala. E, assim, enchendo o meio do prato e comendo pelas bordas, Sua Excelência prepara o cardápio presidencial dos anos que virão.

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