O chavismo não se converteu ao marxismo. Foi o marxismo-leninismo latino-americano que se rendeu a Chávez
Demétrio Magnoli *
Há um ano, a cubana Celia Hart escreveu: “Che impulsionava um sistema de estrelas na América Latina e desprezava o sistema satelital que Moscou queria impor (...) Os partidos comunistas faziam o impossível para continuar orbitando, frios e apagados, ao redor da URSS. O brilho de Che ofuscava o triste cenário daquele modelo de socialismo num só país. Um slogan publicitário da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) em nossa tevê afirma: ‘E isso é só o começo’. Com grande certeza, as possibilidades econômicas, culturais, éticas das revoluções conjugadas que se desenvolvem nesses anos são isso - apenas o começo”.
Hart é uma figura singular. Filha de destacados militantes da Revolução Cubana, ela conserva relações estreitas com Fidel Castro, mas “descobriu” o trotskismo nos anos finais da URSS e, hoje, procura uma síntese entre o guevarismo e a doutrina da revolução permanente. O fato de não estar na prisão, mas escrever e organizar reuniões públicas em Cuba, atesta tanto a profundidade das dissensões no centro dirigente do Partido Comunista Cubano quanto o formidável impacto político da “revolução bolivariana” de Hugo Chávez na América Latina.
À beira do leito de doente de Castro, Chávez cumpriu seu rito de passagem e ganhou um lugar na hagiolatria pagã das esquerdas latino-americanas, enquanto a “revolução bolivariana” funcionava como vetor em torno do qual coagulam-se distintas correntes políticas esquerdistas. Na sua primeira fase, o chavismo organizou-se intelectualmente com base numa leitura particular do bolivarianismo. Na segunda fase, iniciada em 2000, o presidente venezuelano cercou-se de assessores ideológicos que lhe iluminaram a estrada do socialismo.
O sociólogo alemão Heinz Dieterich exerceu forte influência sobre Chávez com seu “socialismo do século 21”. Em essência, esse profeta da “nova esquerda” formulou uma plataforma de revolução por etapas na qual a construção de um capitalismo de Estado funcionaria como ponto de partida para uma posterior evolução socialista, que dependeria do avanço concomitante do “bloco de poder latino-americano”. A Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), lançada por Venezuela e Cuba em 2004, é um fruto desse programa, que abrange também a Petrocaribe, uma coleção de acordos de fornecimento subsidiado de petróleo da PDVSA para 13 países da região caribenha.
Dieterich afastou-se de Chávez na hora do fracassado referendo sobre a nova Constituição, no ano passado. Antes disso, em 2004, o caudilho estabelecia relações com o trotskista britânico Alan Woods, que abomina o “reformista” Dieterich, seu capitalismo de Estado e seu “bloco latino-americano”. O trotskista defende um rápido avanço rumo ao socialismo, pela estatização dos principais meios de produção, e incentivou Chávez a reunir suas forças num partido revolucionário de massas. Sob essa inspiração começou a surgir o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV).
O chavismo está hoje recoberto por espessas camadas ideológicas, mas conserva seu núcleo político original, composto por uma hostilidade visceral à democracia e pela visão de uma Pátria Grande bolivariana sob a liderança venezuelana. As fontes paralelas desse chavismo de primeira água encontram-se na incontida admiração de Chávez pelo caudilho Cipriano Castro e no pensamento geopolítico de Norberto Ceresole.
Cipriano Castro nasceu no estado andino de Táchira, na fronteira com a Colômbia, e governou a Venezuela, como comandante militar supremo e depois como presidente, entre 1899 e 1908. Nesse ciclo turbulento, pontuado por rebeliões e sangrentas vinganças contra opositores, o déspota feriu interesses de banqueiros europeus, enfrentou bloqueios navais britânicos, alemães e italianos e irritou o presidente americano a ponto de provocar a adição do Corolário Roosevelt à Doutrina Monroe. Mas, sobretudo, o “Leão dos Andes”, como queria ser chamado, sonhava com a restauração da Grã-Colômbia, o efêmero Estado sucessor do vice-reino de Nova Granada, presidido por Simón Bolívar, que abrangia Colômbia, Panamá, Venezuela e Equador.
A trajetória do sociólogo argentino Norberto Ceresole conduziu-o dos Montoneros, na extrema esquerda peronista, até o apoio aos militares “caras-pintadas” que se ergueram em 1988 contra os processos por violações de direitos humanos cometidas pela ditadura argentina. Ao longo desse percurso, ele estabeleceu conexões com o regime de Fidel Castro e desenvolveu afinidades intelectuais com o anti-semitismo de Roger Garaudy e Robert Faurisson, tornando-se um notório negador do Holocausto.
O sinistro argentino aproximou-se de Chávez em 1994, assim que o coronel golpista recobrou a liberdade, e assessorou-o até o fim do primeiro ano de governo. Um livro seu, Caudilho, Exército, Povo: a Venezuela do Comandante Chávez, publicado em 1999, meses antes de deixar Caracas em circunstâncias controversas, delineia a visão de um Estado fascista e antiamericano, empenhado na unificação geopolítica do Caribe e da América do Sul. Na narrativa histórica de Ceresole, a Venezuela é um fruto de duas tragédias provocadas pelo capitalismo internacional: a fragmentação da América Hispânica e a subseqüente implosão da Grã-Colômbia, “o espaço bolivariano em sentido estrito”. A meta de restauração da Grã-Colômbia, uma obsessão da “revolução bolivariana”, está na raiz da aproximação de Chávez com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Semanas atrás, Chávez qualificou o governo colombiano de o “Israel da América Latina” e a Colômbia como “um Estado terrorista, subordinado ao governo dos EUA”. No seu pronunciamento, afirmou que “o Ayacucho deste século é a Colômbia”, referindo-se à Batalha de Ayacucho, de 1824, na qual o general Sucre, lugar-tenente de Bolívar, impôs a derrota decisiva às forças espanholas. É essa a moldura ideológica na qual o caudilho venezuelano insere as Farc, que saudou como “um movimento bolivariano digno de nosso respeito”. Não está clara a extensão da cooperação militar da Venezuela chavista com as Farc, mas dissiparam-se as dúvidas sobre a solidariedade política entre elas.
O “bolivarianismo” é um ingrediente novo na linguagem das Farc. A guerrilha degenerada surgiu há meio século, das entranhas do Partido Comunista Colombiano, como um movimento stalinista radicalizado, que sofreu tênue influência do castrismo. Seu horizonte circunscrevia-se à Colômbia, até o início da cooperação com Chávez. A adesão parcial à ideologia do chavismo evidencia-se em entrevista concedida em 2005 por Raúl Reyes, o chefe guerrilheiro morto semanas atrás, na qual ele se identifica como “marxista-leninista e bolivariano” e saúda os “avanços da Alba”.
A Grã-Colômbia introduziu-se nas proclamações das Farc e, mais amplamente, nos textos e discursos de inúmeras correntes esquerdistas que passaram a gravitar na órbita de Hugo Chávez. Celia Hart, a guevarista atraída pelo trotskismo, que abriu um caminho para Alan Woods divulgar seus livros em Cuba, não é uma exceção à regra. Em defesa do “sistema de estrelas” de Che Guevara, ela escreve: “Aposto muito mais no que pode significar essa possível relação revolucionária e na sua extensão a toda a Grã-Colômbia que em tratados, convênios e acordos múltiplos entre governos”. No fim da história, não é o chavismo que se converte ao marxismo, mas o “marxismo-leninismo” latino-americano que se rende a Chávez e se transfigura em “bolivarianismo”.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, doutor em Geografia Humana pela USP, é colunista de O Estado de S. Paulo
TERÇA, 18 DE MARÇO
OEA ‘repudia’, não condena
A OEA rejeitou a tentativa dos EUA de lançar no continente seu princípio de “guerra preventiva”. Ao mesmo tempo, repudiou o ataque da Colômbia a um campo das Farc no Equador, país que desejava a condenação colombiana ao invés do simples “repúdio”.
Que fazer com esses companheiros incorrigíveis?
Foro de São Paulo liga o presidente Lula a Tirofijo, chefão das Farc
Demétrio Magnoli
O senador Aloizio Mercadante pediu uma condenação política das Farc. O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, em entrevista ao Aliás, repudiou os seqüestros e a violência das Farc, mas eximiu-se de condenar a guerrilha degenerada colombiana. O assessor presidencial Marco Aurélio Garcia, quando participava da comissão encarregada de receber os reféns, sugeriu que o Brasil é “neutro” diante do conflito interno na Colômbia. O PT emitiu uma nota sobre o ataque à base de Raúl Reyes no Equador que não menciona as Farc, mas, reproduzindo a linguagem da sua propaganda, acusa o governo colombiano de “matar o negociador”.
Lula, o PT e as Farc estão ligados por uma rede política que é o Foro de São Paulo. Essas divergências, que vieram à luz no rastro da crise triangular Colômbia-Venezuela-Equador, traduzem a tensão dilacerante que pulsa nas esquerdas latino-americanas. É um exercício de futilidade interpretá-las como jogo de cena.
Datas têm significado. O Foro de São Paulo nasceu em 1990, articulado por Lula e Fidel Castro, como instrumento de reposicionamentos estratégicos no pós-Guerra Fria. Para o ditador cubano, a rede latino-americana de organizações de esquerda devia funcionar como uma trincheira de defesa de seu regime no ciclo ameaçador aberto pelo colapso da URSS. Para o líder petista e eterno aspirante à presidência, ela representaria uma moldura de projeção de sua influência regional e uma alternativa a sua incorporação subordinada no espaço político eurocêntrico da Internacional Socialista.
O Foro abriga 75 organizações, entre as quais alguns partidos que ocupam posições destacadas no mapa político de seus países, como o PT, a Frente Sandinista nicaragüense, a Frente Ampla uruguaia, o PS chileno, o MAS boliviano, o PRD mexicano e o PSUV de Hugo Chávez. As Farc participaram da fundação da rede. O deputado José Eduardo Cardozo, atual secretário-geral do PT, mentiu aos espectadores do programa Roda Viva, da TV Cultura, de 10 de março, ao afirmar que as Farc não fazem parte do Foro. A mentira, porém, cumpre o desígnio político de veicular um desejo: as Farc nunca foram excluídas do Foro, mas não receberam convite para seus encontros recentes.
Castro e Lula sempre deram as cartas no Foro. Os dois líderes, separados pelas histórias dissonantes de Cuba e do Brasil, partilhavam a perspectiva comum de redirecionar as organizações de esquerda da América Latina para o jogo político-eleitoral. O melancólico fracasso do governo sandinista na Nicarágua e a renúncia às armas da guerrilha da FMLN em El Salvador, entre 1989 e 1991, foram interpretados como marcos do esgotamento da estratégia insurrecional. Sob o influxo do Foro, as Farc foram empurradas para a mesa de negociações estabelecida pelo presidente colombiano Andrés Pastrana, em 1998, mas explodiram as pontes quatro anos mais tarde.
Numa saudação ao Encontro do Foro de 2005, em São Paulo, Lula fez a apologia da estratégia da adesão ao jogo político-eleitoral, mencionando seu próprio sucesso, mas, também, as vitórias de Hugo Chávez e da Frente Ampla uruguaia: “... para nossa felicidade, muitos companheiros que eram militantes de esquerda na década de 80 estão se transformando em governo. Então, nós passamos a ter uma relação privilegiada com presidentes e com ministros que eram militantes, conosco, do Foro de São Paulo, tentando encontrar uma saída democrática para a esquerda na América Latina”. Por decisão do Planalto, as Farc não receberam convite para aquele Encontro - e protestaram em termos duros, numa carta dirigida ao PT.
O Foro de São Paulo não é uma internacional comunista, mas um campo de forças que interliga, por meio de um continuum de mediações e tensões, o presidente do Brasil a Manuel Marulanda, o Tirofijo, chefão das Farc. Numa nota sobre a preparação do 14º Encontro do Foro, em maio, o PT oferece uma lista das organizações da rede. A relação omite as Farc, mas inclui o Partido Comunista Colombiano, que é o braço legal do agrupamento armado. A ambivalência exprime uma encruzilhada estratégica: o que fazer com os companheiros incorrigíveis que convertem a política numa litania de seqüestros e torturas nas selvas da Colômbia?