"Um caso acaba de mesmerizar Nova York: Daniella, de 6 meses, foi abandonada pelos pais. Discutiu-se o tamanho da pena que o casal merece? Não. Execrou-se a mãe desnaturada? Também não"
No Dia Internacional da Mulher, é uma boa pergunta a ser feita: quem ainda se lembra de Elisabete Cordeiro dos Santos, a mulher que jogou seu bebê num ribeirão poluído na região metropolitana de Belo Horizonte? Aconteceu no fim de setembro do ano passado. A pequena Michele, recém-nascida, foi encontrada boiando no ribeirão. Socorrida numa UTI neonatal, morreu quatro dias depois. É uma tragédia que soma assassinato, abandono e hipocrisia. Um caso muito mais ameno, porque não resultou em morte, acaba de mesmerizar a cidade de Nova York – e traz algumas lições úteis.
Daniella, 6 meses de idade, foi abandonada pelos pais num prédio dos bombeiros no bairro do Queens. Mais de 40 pessoas se ofereceram para adotá-la. É incomum que crianças de 6 meses sejam abandonadas. Em geral, isso acontece com recém-nascidos. Os pais de Daniella, aparentemente imigrantes ilegais do Equador, vão responder por seus atos diante da lei, mas qual foi o foco de discussão sobre o caso? A pena a que o casal deve ser condenado? Não. A execração pública da mãe desnaturada? Também não.
O caso jogou luz sobre como, onde e quando pais podem abandonar seus filhos. Parece coisa de gente insensível, mas é um drible na hipocrisia e um gol de generosidade. Em 1999, o Texas foi o primeiro estado a criar locais onde bebês podem ser deixados – por horas, por dias ou para sempre. Hoje, todos os cinqüenta estados americanos têm lei semelhante. No ano passado, em 36 estados, acolheram-se 321 bebês. É uma tristeza, mas é menos hipócrita que ficar jogando pedra na mãe desnaturada e mais generoso que lidar com bebê em ribeirão.
No Brasil, onde tem gente achando que distribuir camisinha é convite ao sexo e distribuir pílula do dia seguinte é convite ao sexo desprotegido, deve ter gente pensando que a lei americana é convite ao abandono de bebês. Tolice. Na cidade de Nova York, antes da criação dos locais para abandono, apareciam quase vinte recém-nascidos mortos todos os anos. Depois, o número caiu para três.
A diferença está em encarar a realidade e lidar com sua aspereza ou ficar escandalizado, demonizar a mãe e em seguida sair para tomar um sorvete. Depois que uma mãe deixou seu bebê numa loja de conveniência, o estado de Nova York mudou sua lei para contemplar a vida real. Além dos locais especiais, autorizou que bebês fossem deixados com qualquer "pessoa responsável". Faz-se tudo para evitar bebê no lixo, em ribeirão ou vítima de infanticídio. (Nos EUA, o auge da temporada de infanticídio está acabando: é de janeiro a março, quando fecham nove meses das cópulas de jovens imprudentes empolgados com o cortejo de primavera-verão. Dado da realidade.)
Em Nova York, vítimas de infanticídio têm enterro de honra, com bandeiras e cortejo de moto, para chamar a atenção da sociedade para a tragédia. A pequena Michele foi enterrada num pequeno caixão branco no Cemitério da Glória, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Não houve velório, o enterro atrasou. Havia quatro pessoas presentes. Mas o Brasil inteiro, claro, estava indignado. A última notícia sobre sua mãe é que estava na Penitenciária Feminina Estevão Pinto, em Belo Horizonte. Pode pegar de doze a trinta anos de cadeia. No início de outubro, foi removida para uma cela separada. As outras presas ameaçavam matá-la.