Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

Um texto exemplar de Cora Rónai por Reinaldo Azevedo

Infelizmente, não posso ser otimista a ponto de dizer que, para cada Coelho, há sempre uma Cora. Não! Os coelhos se reproduzem mais depressa, como se sabe. Seu tempo de gestação intelectual não se mede em pensamento ou leitura, mas em orelhas de livro rapidamente digeridas, como se fosse capim.

Refiro-me, claro, ao texto que Cora Rónai publicou no Globo de hoje. Honra a inteligência. Honra o jornalismo. Honra a independência. Segue na integra:

Não há ideologia que justifique

Eu ainda acredito, como diz o Millôr, que imprensa é oposição, o resto, armazém de secos e molhados (para quem chegou ontem: pequena loja de bairro, precursora dos supermercados). Acho o jornalismo uma das mais nobres profissões, sobretudo em sua filosofia básica; o mesmo eu poderia dizer da filosofia da profissão médica, por exemplo, embora, numa e noutra profissão, muitos nem percebam a glória do que fazem, tornando-se indignos da "missão" que exercem.

Pode ser efeito colateral do joelho quebrado, pode ser ataque de saudosismo, mas o fato é que já vivi um tempo em que o, digamos, "ecossistema", me dava mais alegrias. É claro que havia, como sempre houve, jornalistas a favor – há quem diga a soldo -- do governo. Bajular os poderosos dá lucro, quando não prestígio, que tantos perseguem.

Mas as águas de então estavam bem divididas: eles eram "eles", nós éramos "nós". Havia um inimigo comum. Além do que, e não é pouco!, tínhamos menos de 30 anos, às vezes pouco mais de 20. "Eles" tinham colunas e empregos públicos, candidatavam-se, enveredavam pela política sem constrangimento. "Nós" acreditávamos, sem duvidar, que o papel da imprensa era combater a ditadura, e que, derrotada esta, estariam derrotadas também a corrupção e a impunidade. Ganhávamos pouco, às vezes ridiculamente pouco. Não chegávamos, como a Amélia, a achar bonito não ter o que comer -- mas não faltava muito para isso.

Até que, um dia, apareceu um agrupamento político chamado PT, e o meio de campo começou a embolar. Isso não ficou claro à primeira vista, pelo menos não para aqueles de nós que ou éramos mais ingênuos, ou já não andávamos diretamente envolvidos em política. Eu me enquadrava nas duas categorias, e ia em frente. Mas minha ficha caiu quando, um dia, voltando de uma feira de tecnologia, com a jaqueta enfeitada com lindos pins e buttons de sistemas operacionais e de chips, levei um dedo no nariz de uma estagiária do JB que, até então, me parecera boa pessoa:

— Por que não está usando o button do PT?!

Levei um susto. Aquele gesto e aquela voz autoritária podiam ter saído de qualquer zona histórica "alienígena", sinistra.

— Exatamente por causa disso, respondi, mas acho que ela não entendeu. Eu, porém, entendi. Não havia mais "nós" e "eles". Havia patrulha e rancor, também entre "nós". Não havia mais o bom combate ou o livre pensar; havia apenas uma ideologia, como todas muito cômoda, construída com bloquinhos de lugares comuns que não exigiam grande raciocínio de ninguém. Ai de quem não compactuasse.
* * *
Quando Lula ganhou as eleições, achei que o mundo das redações voltaria à normalidade. Poder é poder. Imaginar que existe poder "de esquerda" é de uma ingenuidade que não combina com o cinismo e a desconfiança que, em tese, andam de mãos dadas com o jornalismo. Mas, obviamente, maior ingenuidade ainda é supor que quem se ajeita a uma bitola ideológica, por interesse ou por idealismo, guarda alguma capacidade de pensar por conta própria. Sobretudo quando a tal bitola começa a se mostrar lucrativa.
* * *
Já me prometi mil vezes não falar mais nisso e esquecer que hay gobierno soy contra, até porque o governo não está nem aí para o que nós, imbecis também conhecidos como contribuintes, achamos ou deixamos de achar. Quando o sangue me ferve nas veias (vale dizer todos os dias, quando pego o jornal), brinco de faz-de-conta: tento acompanhar o noticiário como se morasse em outra galáxia. O diabo é que há coisas que não há Star Trek que resolva. Agora mesmo, não sei o que me deixa mais perplexa e indignada na farra dos cartões corporativos, se o roubo descarado do nosso dinheiro, ou o contorcionismo mental de colegas, que já considerei gente de boa reflexão, tentando defender essa nojeira.

Os argumentos são espantosos. Aquela ex-ministra racista, que acha tão normal negros odiarem brancos, está, obviamente, sendo vítima de pessoas que não a conhecem; ora, se até o Zé Dirceu já garantiu que ela não agiu por má-fé! Roubou sem querer, a coitada, e a Grande Imprensa, branca e machista, lá, nos seus calcanhares. O outro comprou uma tapioca de míseros oito reais, e a Grande Imprensa, uivam os jornalistas amestrados, dá o fato em manchete. Como se o que estivesse em discussão não fosse o como, mas o quanto. Para não falar na eterna ladainha do governo, repetida como um press-release que, a essa altura, sequer tem o benefício da novidade: "na época do FhC era a mesma coisa". Mas, perdão: não foi para isso que a atual corja foi eleita?! Para mudar tudo o que estava errado?! Para implantar um sentido ético no trato da coisa pública?!
* * *
O pior é que tanto faz quanto tanto fez. Enquanto o nosso dinheiro paga qualquer leviandade protegido pelo manto putrefato da "Segurança Nacional", enquanto jornalistas arrastam a profissão na lama defendendo a corrupção, os poderosos, às nossas costas, se entendem. As famiglias ficarão a salvo.

"Eles" venceram.

Uma mensagem de Cora Rónai

Às 19h26 de ontem, postei o texto que Cora Rónai, colunista de O Globo, publicara no jornal. À 1h37 desta madrugada, Cora enviou um comentário para cá, que reproduzo abaixo. Havia, então, 80 comentários a seu texto, a maioria esmagadora de aprovação. Segue a mensagem de Cora. Volto em seguida:

Reinaldo,
muitíssimo obrigada pela gentileza, pelo espaço no blog e, sobretudo, pelos elogios, que tanto me honram.
Só não digo que ganhei o dia porque agora (1h37m) é que abri o notebook; mas vou dormir feliz, especialmente depois de ler os comentários e de ver que tanta gente acha que não, que eles não venceram.
Desculpem, amigos. Vocês têm razão. Eu é que talvez tenha cedido a um momento de pessimismo; mas quem é que consegue manter o otimismo em tempo integral neste país?!
Aos que não me conhecem, um esclarecimento: posso dizer, com orgulho, que nunca votei no PT. Nunca fui petista.
Na verdade, nunca fui nada, além de jornalista.
Um grande abraço.
Cora

Comento
Cora,
Cumpri uma obrigação. E digo mais: atendi a um reclamo: já havia recebido, então, dezenas de pedidos para que seu texto fosse reproduzido no blog. Porque ele traz aquela que é, acredito, a moral profunda desta página e de seus milhares de leitores: o cultivo da liberdade, da inteligência, do pensamento que não se subordina a nenhuma outra amarra que não seja a tolerância, o respeito ao outro, o bom jornalismo.
Esse é o patrimônio que tantos antes de nos lutaram para construir — incluindo o grande Paulo Rónai, que deixou um importante legado aos brasileiros. Legado que você honra e faz crescer com a sua independência.
Um grande abraço,
Reinaldo

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