Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

Sinal verde para os profanadores Augusto Nunes


O único rio da Amazônia com nome de gente homenageia o único presidente que conheceu as profundezas da maior floresta tropical do planeta. Nenhum outro chefe de governo esteve lá. Nenhum pisou grotões intocados desde o Dia da Criação. Nenhum navegou por rios selvagens. Nenhum viu de perto o coração da selva. Só o americano Theodore Roosevelt, que ocupou a Casa Branca entre 1901 e 1909, fez o que os presidentes brasileiros jamais fizeram. De Deodoro da Fonseca a Lula, todos limitaram-se a contemplar a Amazônia profunda do convés do navio ou da janela do avião.

O Rio Roosevelt não era sequer um sulco nos mapas oficiais quando, no começo de 1914, aquele cinqüentão com estampa de lenhador, óculos de mestre-escola e voz de quem dava ordens já no berço, chegou às cabeceiras localizadas no território do Guaporé (que esperaria muitos anos para ser promovido a Estado de Rondônia). Ninguém conhecia a trajetória do curso d'água a que chamavam Rio da Dúvida. Roosevelt gostou da idéia de dividir com o marechal Cândido Rondon o comando da expedição organizada para decifrar o enigma fluvial.

"É a última chance que tenho de me sentir adolescente", explicou no dia da partida. Quando embarcou, exibia um sorriso de menino. Meses depois, ao voltar da incursão pelo desconhecido, parecia muitos anos mais velho. Sobrevivera a ataques de animais selvagens, a emboscadas de tribos indígenas tão isoladas quanto nos tempos do Descobrimento, à malária e a uma infecção na perna cujas seqüelas lhe abreviariam a vida. Foi o preço pago pelo mergulho no que lhe pareceu "um ecossistema sem similar, complexo e interdependente".

Até a morte em 1919, recusou-se a posar de especialista em assuntos da floresta. O estadista americano sabia que não vira pouco. Mas compreendera que precisaria ver muito mais para conhecer efetivamente aquele mundo singularíssimo. Lula é o avesso de Roosevelt. Nada sabe da Floresta Amazônica. As árvores que viu, somadas, caberiam com folga na área que as motosserras do companheiro Blairo Maggi desmatam a cada mês. Mas trata os assuntos da selva com a intimidade de um ribeirinho octogenário.

Como todos os antecessores, Lula só se aproximou da mata fechada quando passeou pela Amazônia para turistas. Desceu o Rio Negro até o encontro com as águas do Solimões, subiu o Rio Negro até as Anavilhanas, brincou de cacique em pajelanças com índios que capricham no urucum só quando pagos em euros, foi apresentado a jacarés de Jacuzzi e sobrevoou a pororoca. Tal milhagem bastou para que estocasse um punhado de frases na garganta e meia dúzia de idéias na cabeça.

Ao encontrar-se na Guiana Francesa com o presidente Nicolas Sarkozy, Lula temperou o discurso de improviso com uma revelação inquietante e um monumento à ignorância. "Não sou daqueles que defendem a Amazônia como um santuário da Humanidade", confessou o presidente, recitando o que merece virar refrão de algum hino ao desmatamento. "Do lado brasileiro", decolou, "moram quase 25 milhões de pessoas que querem trabalho, comer, ter carro e ter acesso aos bens produzidos".

Lula não sabe (ou finge não saber; dá no mesmo) que a Amazônia não é uma só. É um universo múltiplo. Abrange tanto áreas de vegetação baixa quanto vastidões onde se enfileiram árvores gigantescas. Engloba tanto terras à disposição da turma do agronegócio quanto santuários naturais que pertencem, sim, à Humanidade. Lula já não enxerga a Amazônia de Marina Silva. Só a de Blairo Maggi,

Tampouco sabe (ou finge não saber; dá no mesmo) que a imensa maioria da população da Amazônia está concentrada nas cidades, sobretudo nas capitais. Se em alguns centros urbanos falta trabalho, se o "acesso aos bens produzidos" anda difícil, o Bolsa Família está aí para isso mesmo. Muitos moradores da região ainda não chegaram às três refeições diárias prometidas pelo candidato. Mas o Fome Zero não deixa ninguém morrer de inanição. E o trânsito congestionado sugere que as revendedoras de automóveis seguem lucrando bastante.

As carências mencionadas no discurso afetam os brasileiros da floresta, os que sobrevivem em cidades minúsculas, casarios esquecidos no meio da mata, aldeias indígenas e ilhas semidesertas. Esses não são muitos. E podem esperar pelo carro. Querem, primeiro, que o governo apareça por lá - e apareça para ficar. Além das Forças Armadas, nenhum braço do Estado lhes estende a mão. Faltam médicos, professores, juízes, promotores, policiais, tudo. Não reivindicam visitas de presidentes. Só querem que o governo descubra que existem.

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