Não foram poucos os observadores que estranharam o fato de Fidel Castro apresentar-se como candidato a uma das 614 cadeiras da Assembléia Nacional do Poder Popular, há pouco menos de um mês. Para muitos, isso só fazia sentido se o ditador pretendesse reeleger-se presidente do Conselho de Estado, como vinha acontecendo desde 1976, depois de ter exercido o cargo de primeiro-ministro durante os 18 primeiros anos da revolução cubana. Era óbvio, porém, que o estado de saúde de Fidel não lhe permitiria exercer o cargo, por isso mesmo entregue interinamente a seu irmão Raúl Castro desde julho de 2006.
Nesta terça-feira, Fidel Castro abriu o jogo. Em mensagem publicada no Granma, comunicou aos cubanos que “não pleitearei nem aceitarei - repito -, não pleitearei nem aceitarei o cargo de presidente do Conselho de Estado e Comandante-em-Chefe. E explicou porque, apesar de debilitado pela doença, não comunicou sua decisão há mais tempo: “Prepará-los para minha ausência, psicológica e politicamente, era minha primeira obrigação, depois de tantos anos de luta.” Não se poderia esperar nada diferente de um autocrata que criou e nutriu o culto à sua própria personalidade e subjugou uma nação a seus dogmas e vontades durante 49 longos anos.
Seu herdeiro, Fidel nomeou há muitos anos. É seu irmão Raúl. Os rumos de Cuba, no que depender dele, também estão traçados e são os de sempre. Para mantê-los, confia nos quadros da velha guarda - naqueles que combateram a ditadura de Batista nas montanhas, para que ele pudesse implantar a sua própria tirania - “e na geração intermediária que aprendeu conosco os elementos da complexa e quase inacessível arte de organizar e dirigir uma revolução”. Esses quadros, afirmou, “contam com a autoridade e a experiência para garantir a sucessão”.
Há cerca de dez anos, quando se tornaram insuportáveis as agruras causadas pela interrupção da mesada que Cuba recebia da União Soviética, Fidel ensaiou uma modesta abertura econômica na Ilha, mas sem permitir a menor possibilidade de que houvesse uma fissura na couraça política da ditadura. Não gostou da experiência e voltou atrás. O testamento político que acaba de divulgar, se cumprido à risca, petrificaria Cuba por mais meio século. E esse não parece ser o plano de Raúl Castro.
Não se deve esperar, no futuro previsível, grandes aberturas no regime castrista. Na sessão da Assembléia Nacional que se inicia no domingo, os homens que constituem o núcleo principal do castrismo - Raúl, o vice-presidente Carlos Lage, o presidente da Assembléia, Ricardo Alarcón, e o chanceler Felipe Pérez Roque - certamente cumprirão o ritual de vassalagem ao ditador que se desapega dos cargos. Mas, mesmo fora da estrutura formal de poder - do Estado e do partido -, Fidel continuará tendo uma influência notável e, até sua morte, talvez decisiva sobre os destinos de Cuba.
Desde que substituiu o irmão, Raúl Castro tem manifestado publicamente o desejo de fazer reformas econômicas e de iniciar um diálogo diplomático com os principais países do Ocidente, inclusive os Estados Unidos. Quando apresentou seu programa de governo, por exemplo, surpreendeu ao reconhecer que os salários pagos na Ilha são insuficientes para uma subsistência digna, que são necessárias reformas estruturais e que a economia tem de se abrir para o capital estrangeiro. Diz-se disposto a acabar com o “excesso de proibições e de burocracia” e a permitir o comércio de automóveis e imóveis. Depois disso, propôs um debate nacional sobre os problemas econômicos de Cuba, do qual participaram cerca de 5 milhões de pessoas.
Também manifestou o desejo de normalizar o relacionamento de Cuba com a União Européia - abalado desde a prisão de 75 dissidentes - e sugeriu a abertura de um diálogo direto, sem intermediários, com o presidente George Bush.
Embora tivesse condicionado todos esses avanços à manutenção do regime castrista - ou seja, das restrições às liberdades fundamentais -, as reformas não aconteceram. “Todos gostaríamos de marchar mais rápido, mas nem sempre é possível”, disse Raúl à Assembléia.
O obstáculo, como se sabe, era Fidel. E continuará sendo, enquanto ele for “uma arma a mais do arsenal, com a qual se poderá contar”.