Lei Seca, a missão O Brasil já tinha uma legislação que limitava o consumo
No Brasil, 50% das 35.000 mortes ocorridas anualmente em acidentes de trânsito são causadas por motoristas alcoolizados. Trata-se de uma porcentagem altíssima: no Uruguai, ela é de 37%, no Chile, de 25%, e na Colômbia, de 10%. A lei que entrou em vigor no Brasil no último dia 20, e que estabelece tolerância zero ao uso de álcool por quem vai dirigir, tem o objetivo de trazer esses números para um patamar mais aceitável. E, a julgar pelos dados divulgados, está conseguindo: nos dez primeiros dias da aplicação da Lei Seca, como ficou conhecida, o número de mortos nas estradas federais caiu 16% em relação ao mesmo período do ano passado. Muito bem. Mas há um detalhe perturbador nessa história: já não existia no Brasil uma lei que limitava o consumo de álcool por motoristas? Sim: foi criada em 1997 e estabelecia um limite de 0,6 grama da substância por litro de sangue. E ela funcionava? Não: basta lembrar que, até duas semanas atrás, quem tivesse tomado duas taças de vinho num jantar, em geral, não via nenhum problema em seguir diretamente para o volante. Diante disso, surgem duas perguntas: por que a lei antiga não era aplicada? E, se não era aplicada, quem garante que a nova será?
A lei antiga não funcionava por dois motivos principais: 1) era pouco cobrada pelas autoridades que deveriam zelar pela sua aplicação (atire a primeira pedra de gelo quem se lembra de ter sido abordado por um comando antiálcool na saída de uma festa ou restaurante) e 2) quase ninguém sabia o que ela dizia. Segundo a pesquisa "Beber e dirigir no Brasil", concluída em 2007 pelos médicos Ronaldo Laranjeira e Sérgio Duailibi, apenas 15% dos motoristas tinham conhecimento do limite máximo de ingestão de álcool permitido. A antiga lei veio no bojo do Código de Trânsito Brasileiro, que entrou em vigor em janeiro de 1998 e passou a estabelecer, entre outras coisas, a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança em todo o país (regra que, ao menos nas grandes cidades, pegou) e a proibição de falar ao celular ao volante (que não pegou em quase lugar nenhum). "Por fazer parte de um pacote, a lei anterior acabou passando quase despercebida", afirma o deputado Hugo Leal (PSC-RJ), responsável por incluir a Lei Seca na medida provisória que, originalmente, estabelecia apenas a proibição de venda de álcool nas estradas federais. Já o comandante do policiamento de trânsito de São Paulo, major Ricardo Fernandes, é da opinião de que a antiga lei funcionava mal porque a dosagem máxima era alta (sim, mesmo que significasse apenas duas taças de vinho). Assim, um grande número de motoristas que havia bebido não atingia esse patamar – e era liberado. Desde junho do ano passado, pouco depois que São Paulo começou a intensificar a fiscalização do consumo de álcool por motoristas, de 3.000 pessoas submetidas ao teste do bafômetro apenas 500 foram autuadas por exceder o limite de 0,6 grama/litro de sangue, afirma o major. Enquanto isso, uma quantidade duas vezes e meia maior de motoristas, que também havia bebido, viu-se livre por estar abaixo do limite de álcool permitido – o que é um dado perigoso, segundo especialistas. E aqui se chega à questão que mais discussão rendeu nos últimos dias em relação à nova lei: a tolerância zero não seria um exagero? Afinal, países que há muito tratam com rigor a questão do álcool no trânsito têm parâmetro bem mais camarada. Nos Estados Unidos, por exemplo, tolera-se até 0,8 grama de álcool por litro de sangue, o equivalente a três taças de vinho. Os americanos estão sendo permissivos ou os brasileiros é que estão sendo puritanos?
Os quatro especialistas em álcool e trânsito ouvidos por VEJA acham que o Brasil é que está certo. Com 0,2 grama de álcool por litro de sangue – concentração que se atinge já na primeira lata de cerveja, taça de vinho ou dose de uísque –, um motorista que pesa 70 quilos sofre uma leve perda de coordenação, tem comprometida sua noção de distância e velocidade e fica com a visão periférica reduzida. Além disso, as pessoas reagem de maneira diferente à bebida. "Uma mulher franzina, que não está acostumada a beber, ou que bebeu de estômago vazio, pode perder o controle da direção e causar um acidente depois de consumir uma dosagem que não comprometeria tanto outra pessoa", afirma o presidente da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, Flávio Adura. Em vista disso, o que os especialistas dizem é que o único limite de alcoolemia seguro para todos (frise-se: todos) os motoristas é zero. "Além disso, para a população, é muito mais fácil entender o que quer dizer ‘zero de álcool’ do que o que significa 0,6 ou 0,8 grama/litro", diz a coordenadora do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool, Camila Silveira. Apenas uma lei clara e dura, no entanto, não garante a eficiência de uma política de combate ao álcool ao volante. Para que isso ocorra, a legislação tem de estar amparada por outros dois elementos: fiscalização e educação, afirma Adura. E aí os Estados Unidos levam larga vantagem sobre o Brasil. Além de preverem punição mais dura para os infratores, os americanos são mais rigorosos com a fiscalização e preocupados com o aspecto educacional. Lá, sempre que se percebe que mais de 2% dos motoristas submetidos ao bafômetro estão acima do nível de alcoolemia permitido, os governos estaduais lançam campanhas de prevenção e intensificam as ações policiais. Do tripé legislação, fiscalização e educação, o Brasil, por enquanto, fica devendo os dois últimos. A Polícia Rodoviária Federal já declarou que não pretende aumentar o efetivo destinado aos testes de bafômetro, embora prometa equipar suas 2.000 viaturas com o aparelho nos próximos dois anos. Em São Paulo, a PM possui 25 medidores de álcool no organismo. O Rio de Janeiro conta com míseros três bafômetros e ainda não planejou de que forma atuará para fazer cumprir a nova lei. Quanto às campanhas em curso, elas estão no mesmo nível da tolerância prevista na nova lei: zero. Caso não se reverta essa situação, a Lei Seca, apesar de todo o barulho que vem provocando, tem tudo para acabar no mesmo lugar em que foi parar a sua antecessora: afogada nos copos do esquecimento. Com reportagem de Renata Moraes |
Entrevista:O Estado inteligente
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